Os hábitos alimentares inadequados e a indisciplina alimentar demonstram ser as principais causas do aumento dos problemas metabólicos. Os sinais e sintomas da disfunção labiríntica parecem estar entre as primeiras queixas dos pacientes com diabetes latente ou diminuição da tolerância à glicose. Observa-se que, uma parcela significativa dos indivíduos atendidos em nossa população ambulatorial, com queixas de sintomas relacionados ao equilíbrio e audição, são portadores de distúrbios no metabolismo dos carboidratos.
Ao longo dos anos, vêm-se observando que o tratamento dietético pode reduzir de forma acentuada, os sintomas da disfunção labiríntica. Com base nesta observação, buscamos revisar a literatura de forma a avaliar a relação entre o manejo dietético e o controle da função labiríntica. De forma geral, a literatura concorda com a nossa observação de que o tratamento dietético pode diminuir os sintomas da disfunção labiríntica, proporcionando o alívio para o paciente e melhorando a sua qualidade de vida.
As queixas vestibulares e auditivas têm, freqüentemente, sido associadas ao metabolismo anormal dos carboidratos e dos lipídios. Estima-se que a ocorrência dos distúrbios do metabolismo dos carboidratos, esteja entre 42% a 80% dos pacientes portadores de zumbidos e tonturas e, se percebe a nítida necessidade de demonstrar o impacto destes distúrbios sobre o funcionamento da orelha interna, pois nos parece evidente a melhora dos sintomas com a instituição da dieta.
LABIRINTOPATIA METABÓLICA
Diversas condições metabólicas afetam intensamente o funcionamento do ouvido interno. Estas são capazes de determinar o aparecimento de alterações labirínticas que, na maioria dos casos, são decorrentes de distúrbios no metabolismo de carboidratos (SILVA, 2000).
A condição metabólica mais freqüentemente relacionada à disfunção da orelha interna refere-se aos distúrbios na secreção da insulina, com ou sem hipoglicemia reativa concomitante.
As estruturas labirínticas apresentam atividade metabólica intensa, sendo altamente sensíveis aos níveis de oxigênio, glicose e ATP (Adenosina Trifosfato). O labirinto é particularmente sensível a pequenas variações nos níveis plasmáticos de glicose e insulina. Tanto a hipoglicemia quanto a presença de altos níveis de insulina interferem na atividade enzimática responsável pelo potencial endococlear (BITTAR, 2004).
Nas labirintopatias ou afecções vestibulococleares, os sintomas mais freqüentes, em pacientes com hiperinsulinemia, são a vertigem típica, associada a sintomas auditivos, como tinnitus, sensação de plenitude auricular, disacusia e cefaléia, limitando a qualidade de vida do indivíduo. É notável que os antecedentes pessoais e familiares dos portadores de labirintopatia metabólica revelam hábitos de alimentação inadequados, sedentarismo e tendência familiar para doenças como diabetes, hipertensão arterial e distúrbios hormonais (SILVA, 2000). De acordo com Ganança (1995), dois terços dos casos ocorrem em pessoas do sexo feminino, na faixa etária compreendida entre os 35 e 55 anos (80% dos casos), com tendência à obesidade , queixa de crises vertiginosas, já tendo sido submetidas a diversos especialistas, apresentando melhora parcial no início, porém sem resultado a longo prazo.
É evidente que, nos distúrbios metabólicos sistêmicos, o labirinto é atingido precocemente, sinalizando a necessidade de intervenção. Em relação à orientação terapêutica, o distúrbio deve ser diagnosticado e corrigido. Na maioria das vezes a correção requer orientação alimentar.
A HIPERINSULINEMIA COMO FATOR DESENCADEANTE DA LABIRINTOPATIA
Os carboidratos constituem a fonte mais importante de energia do organismo sendo que o principal carboidrato é a glicose (CINGOLANI, 2004). Os carboidratos são ingeridos com a dieta, principalmente na forma de polissacarídeos (amido) e dissacarídeos (sacarose e lactose). Após a sua digestão, os carboidratos passam para a circulação como monossacarídeos. Os monossacarídeos glicose, frutose e galactose são absorvidos, através da mucosa intestinal, e chegam até o fígado através da veia porta (CINGOLANI, 2004). O fígado libera glicose na corrente sangüínea, onde seu nível é mantido por ações dos hormônios. A elevação dos níveis séricos de glicose estimula insulina, que retira glicose da corrente sangüínea para as células (LIPPINCOTT, 2004).
Dentre os distúrbios do metabolismo do açúcar aceitos atualmente como responsáveis por alterações labirínticas, estão as disfunções metabólicas da glicose, incluindo diabetes, hipoglicemia reativa e hiperinsulinemia (BITTAR, 2004). A secreção de insulina, que é constante, pode ser modificada de acordo com estímulos específicos que podem aumentar ou diminuir sua taxa secretória (DOUGLAS, 2002). Além dos neurotransmissores e hormônios, os nutrientes constituem-se estímulo para a secreção insulínica. Os níveis aumentados de insulina resultam na redução da oferta de oxigênio para as células, o que induz prejuízo à função auditiva (BITTAR, 2003).
A insulina e, secundariamente, a glicose, seriam fundamentais na produção energética e ao adequado funcionamento da bomba de sódio e potássio. Ao nível celular e bioquímico isto se explica pela composição dos líquidos labirínticos: a endolinfa, é rica em potássio e pobre em sódio. A perilinfa, ao contrário, é rica em sódio e pobre em potássio (FERREIRA JÚNIOR, 2000). Como os líquidos são separados por uma membrana permeável, existe uma tendência às trocas dos líquidos gerando hipernatremia na endolinfa, deslocando água para este compartimento, provocando vertigem, zumbido, hipoacusia e plenitude auricular (FERREIRA JÚNIOR, 2000).
Com o adequado fornecimento de energia, obtida pela oxidação da glicose, o sódio retorna à perilinfa em troca de potássio, evitando as alterações clínicas citadas. Portanto, para manter o equilíbrio da bomba de sódio e potássio é necessário um aporte adequado de glicose e oxigênio, pois é através dessas duas substâncias que haverá a liberação de energia essencial para o funcionamento adequado do ouvido interno.
Do contrário, o aporte insuficiente de energia, gerado pela hiperinsulinemia, provoca a inativação da bomba de sódio e potássio o que, segundo Silva (2000), resulta também em queixas relativas à intolerância a sons, dificuldade de concentração, tendência à obesidade, irritabilidade, sonolência matinal e migrânea.
OS ALIMENTOS NO CONTROLE DA INSULINEMIA
Quando nos alimentamos, o processo de absorção dos nutrientes ocorre de forma gradual e contínua, aproximadamente 20 minutos após o início da refeição (POIAN, 2005). Após uma refeição, podem ser observados níveis plasmáticos de glicose alcançando o dobro dos níveis basais. Daí a importância de que a secreção de insulina ocorra também de forma gradual, acompanhando as oscilações dos níveis plasmáticos de glicose (POIAN, 2005).
O estímulo à secreção de insulina se dá por diversos fatores e qualquer desequilíbrio na concentração fisiológica de glicose plasmática pode determinar alterações e danos em vários tecidos/órgãos (POIAN, 2005).
O aumento na incidência de diabetes evidencia uma inabilidade gradual do pâncreas na produção de elevadas concentrações de insulina ao longo da vida.
Segundo Fukuda (2003), o consumo de sacarose tem sido exagerado nas últimas décadas e nosso organismo não teve o tempo necessário para adaptar-se às elevadas quantias ingeridas. O resultado dessa inadequação é a hiperinsulinemia com conseqüente hipoglicemia reativa e sintomas como cefaléia, sonolência, tonturas, etc (BITTAR, 2004).
A absorção de alimentos contendo carboidratos depende de sua complexidade estrutural, seu teor de fibras e sua apresentação. Isto resulta em graus variáveis de absorção da glicose neles contidos (COSTA, 2004). A intervenção nutricional nos distúrbios do metabolismo dos carboidratos, prevê o controle tanto do índice glicêmico dos alimentos utilizados na dieta quanto da carga glicêmica presente em cada refeição. O índice glicêmico de um alimento está relacionado ao impacto de sua composição na glicemia (alto, moderado ou baixo) após a sua ingestão. Já a carga glicêmica está relacionada ao impacto resultante do volume ingerido (alto, médio ou baixo). Um alimento que apresenta alto índice glicêmico, não necessariamente vai representar alta carga glicêmica na refeição, se a quantidade ingerida estiver sob controle. Na prática clínica, observa-se que, uma dieta com baixa carga glicêmica reduz os lipídios sangüíneos em indivíduos hipertrigliceridêmicos; reduz a secreção de insulina e melhora o controle global da glicemia em pacientes diabéticos insulino-dependentes e não insulino-dependentes.
O incremento de alimentos ricos em fibras solúveis e o adequado fracionamento das refeições, também buscam retardar a taxa de liberação de nutrientes no organismo, com repercussão positiva no controle dos distúrbios metabólicos. Quanto maior o teor de fibras do alimento e o retardo do esvaziamento do estômago, menor será a elevação da glicose no sangue após sua ingestão. Por outro lado, de acordo com Costa, 2004, a “pré-digestão” dos alimentos (amassar, triturar, esmagar, ralar e o excessivo cozimento) pode facilitar e aumentar a absorção da glicose. Neste caso, a alteração do índice glicêmico, é dependente dos outros alimentos ingeridos na mesma refeição e do modo de preparo dos mesmos.
Além do controle da quantidade, da qualidade, da freqüência e da combinação dos alimentos, é fundamental que sejam excluídos dos hábitos alimentares e de vida o consumo de álcool, da cafeína e o uso do tabaco, por conterem substâncias estimulantes da liberação da insulina.
Shils (2003) afirma que diferentes indivíduos podem ter respostas glicêmicas vastamente diferentes a um alimento, dependendo do seu estado de tolerância à glicose, idade e peso. Uma das mais eficazes opções terapêuticas parece ser a utilização de dietas nutricionais adequadas a cada caso, para que o tratamento seja dirigido à causa do distúrbio.
A PARTICIPAÇÃO DA DIETA NO CONTROLE DA LABIRINTOPATIA METABÓLICA
A dieta é a principal arma no combate aos sintomas causados por alterações do metabolismo da glicose ou da insulina. Está bem estabelecido que 90% dos pacientes submetidos a orientações dietéticas têm alívio ou cura dos sintomas (BITTAR, 1998 apud Mangabeira-Albernaz (1984).
Na prática clínica, observa-se que, durante o tratamento, os indivíduos com distúrbio labiríntico e alterações na curva insulinêmica, têm os sintomas reduzidos, em diferentes graus de intensidade. Entre três e seis meses de acompanhamento os mesmos desaparecem, quase em sua totalidade.
Nota-se, também, que os sintomas mais freqüentes e mais beneficiados com o uso da dieta são a cefaléia, a tontura, a sonolência e a plenitude auricular. Após a avaliação dos indivíduos, conclui-se que a maioria dos casos está relacionada a vícios nutricionais comuns.
Acredita-se que a intervenção nutricional precoce, em indivíduos que apresentam distúrbios da audição e do equilíbrio de origem metabólica, pode ser eficaz na redução ou mesmo no desaparecimento dos sintomas, contribuindo para o alívio do paciente e para uma melhor qualidade de vida. Um controle metabólico adequado pode retardar o aparecimento ou a progressão de complicações crônicas.
REFERÊNCIAS
BITTAR, R. S. M.; BOTTINO, M. A.; VENOSA, A. et al. 2004. Vestibular impairment secondary to glucose metabolic disorders: reality or myth? Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, v.70, n.6, nov/dez. São Paulo. 801-6.
BITTAR, R. S. M.; BOTTINO, M. A.; ZERATI, F.E. et al. 2003. Prevalência das alterações metabólicas em pacientes portadores de queixas vestibulares. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia. v.69, n.1 jan/fev. São Paulo.
BITTAR, R. S. M; SANCHEZ, T. G.; SANTORO, P.P et al. 1998. O metabolismo da glicose e o ouvido interno. Arquivos Internacionais de Otorrinolaringologia. V.2 Ed.1. São Paulo. 112-20.
CINGOLANI, G. C. 2004. Metabolismo dos carboidratos. In: CINGOLANI, H. E.; HOUSSAY, A. B. Fisiologia humana de Houssay. 7. ed. Porto Alegre: Artmed. 508-16.
COSTA, A. A; ALMEIDA NETO, J. S. 2004. Manual de diabetes: educação, alimentação, medicamentos, atividades físicas. 4. ed. São Paul Sarvier.
DOUGLAS, Carlos R. 2002. Tratado de fisiologia aplicada à nutrição. São Paul Robe Editorial.
LIPPINCOTT, W. & W. 2004. Nutriçã incrivelmente fácil. Rio de Janeir GUANABARA KOOGAN.
FERREIRA JÚNIOR, C. A.; GUIMARÃES, R. E. S.; BECKER, H. M. G et al. 2000. Avaliação metabólica do paciente com labirintopatia. Arquivos da Fundação Otorrinolaringologia, São Paulo, v.4, n.1 jan/fev/mar.
FUKUDA, Y. 2003. Otorrinolaringologia. Guias de medicina ambulatorial e hospitalar. São Paul Manole.
GANANÇA, M. M.; FUKUDA, Y. 1995. Labirintopatias vasculares e metabólicas. In: HUNGRIA H. Otorrinolaringologia. 7 ed. 393-401. Rio de Janeir GUANABARA KOOGAN. 393-401.
MANGABEIRA-ALBERNAZ, P. L. M. 1995. Doenças metabólicas da orelha interna. RBM. 2(1): São Paulo. 18-22.
POIAN, A. T.; CARVALHO-ALVES P. C. 2005. Hormônios e metabolism integração e correlações clínicas. São Paul Atheneu.
SHILS, M. E et al. 2003.Tratado de nutrição moderna na saúde e na doença. 9. ed. São Paul Manole.
SILVA, M. L. G et al. 2000. Labirintopatias de origem metabólica. In: SILVA M. L. G; MUNHOZ M. S. L; GANANÇA M. M; CAOVILLA, H. H. Quadros clínicos otoneurológicos mais comuns. 37-45. São Paul Atheneu.
Fonte: http://www.brasilclinicas.com.br/artigos/ler.aspx?artigoID=67
ORIENTAÇÕES NUTROLÓGICAS PARA LABIRINTOPATIAS
- Não permaneça mais de três horas sem se alimentar, sendo que deve-se evitar refeições apenas com carboidratos, portanto sempre acrescente algo que altere a carga glicêmica (gordura, proteína, fibras);
- Procure comer devagar e mastigar bem os alimentos;
- Coma frutas (com baixo índice glicêmico) e legumes e verduras pelo menos duas vezes ao dia;
- É recomendado a suspensão do consumo de álcool e cigarro;
- Beba no minimo 40ml/kg/dia de água:
- Faça atividades físicas e descubra a qual você se adapta mais, a prática de atividade física é crucial no tratamento, em especial musculação;
- Evite bebidas estimulantes como café, chá preto, chá verde e chocolates;
- Evite açúcares, trocando-o pelos adoçantes;
- Diminua o consumo de sal;
- Evite na medida do possível, de situações de estresse, aumentando o tempo de lazer;
- Substitua a fritura por alimentos assados;
- Consuma fontes de zinco, potássio, magnésio, complexo B e omega 3.
terça-feira, 6 de outubro de 2015
Orientações nutrológicas para distúrbios labirínticos
Postado por
Dr. Frederico Lobo
às
10:50
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sábado, 3 de outubro de 2015
A contaminação das águas e a disseminação de doenças de proliferação hídrica
“Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos”, comenta o virologista.
“As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
Segundo o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a ‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades”, pontua.
Na entrevista a seguir, Spilki comenta que além da falta de tratamento do esgoto, as águas contaminadas são um potencial para o desenvolvimento de uma série de vírus causadores de doenças. “Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento”.
Fernando Spilki é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veterinárias pela UFRGS, na área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente leciona na Universidade Feevale.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as causas da contaminação das águas brasileiras? A água de todas as regiões brasileiras está contaminada?
Fernando Spilki – As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX. Essa expansão se deu de forma fragmentada, sem planejamento adequado. Justamente por isso, pela falta de planejamento, e por uma óptica que já podia ser considerada anacrônica mesmo para a época, os corpos d’água foram em muitos momentos considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a “diluição é a solução”, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades.
Outros determinantes históricos importantes foram a concepção dos militares de que governo e desenvolvimento estavam ligados a grandes obras de distribuição de água potável, sem considerar a necessária expansão na outra via de coleta e tratamento de esgoto e o foco do crescimento baseado na indústria e na revolução verde, em muitos casos a qualquer custo do ponto de vista ambiental. De alguns destes males não estamos livres até hoje, mesmo passadas décadas do processo de redemocratização. Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos. Ainda que esforços tenham sido feitos pelas indústrias, muito em virtude da evolução dos processos de fiscalização, em todo o Brasil ainda são notificados em grande número problemas relacionados ao descarte inadequado de efluentes industriais. E ainda há a questão dos dejetos de produção animal e agrícola, que não são de modo algum negligenciáveis.
Quanto à segunda questão, os dados da Agência Nacional de Águas – ANA e de inúmeros pesquisadores mostram que lamentavelmente em todas as regiões pode-se sim observar problemas quanto à qualidade da água. Alguns problemas como a eutrofização (crescimento de algas que afeta a viabilidade dos corpos hídricos em sustentar a vida), a contaminação por diferentes microrganismos e poluentes químicos podem ser notadas em diversas regiões, praticamente onde quer que se busque.
IHU On-Line – O que a análise microbiológica da Baía de Guanabara revela sobre a qualidade da água da Baía?
Fernando Spilki – Essa análise que conduzimos junto à agência de notícias Associated Press não revela algo desconhecido, os problemas de qualidade da água no contexto da Baía da Guanabara são descritos de longa data, mas infelizmente parece que sempre temos de avisar sobre questões que vão sendo deixadas de lado. A própria presença de vírus causadores de doenças de veiculação hídrica na Lagoa Rodrigo de Freitas e nas praias mais frequentadas tem antecedentes. A Fiocruz produziu, num passado recente, excelentes estudos sobre o mesmo tema. Aquela situação nada mais é que o resultado dessas questões de um processo de crescimento dos grandes centros urbanos não acoplados a um plano de desenvolvimento que contemplasse a questão do esgoto doméstico. São hoje em torno de 13 milhões de pessoas que vivem naquele entorno, com um sistema de tratamento de esgoto muito aquém do ideal.
Não é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, mas é emblemático, pois trata-se de um cartão postal maravilhoso do país, com um povo alegre e hospitaleiro como poucos, daí o impacto que teve esse estudo, claro que associado à questão olímpica.
O que esperamos é que toda essa polêmica gerada tenha reflexos para depois e além da Olimpíada: que se repense o manejo do esgoto doméstico naquele ambiente e que seja de fato beneficiada a população residente no Rio de Janeiro. E tomara que toda essa discussão sirva também de alerta no resto do Brasil. Outra questão relevante é de trazer à tona a questão de parâmetros e medidas mais adequados ao século XXI para monitoramento da segurança e qualidade da água.
“Esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves”
IHU On-Line – Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando Spilki – Quando pensamos em doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d’água pelos dejetos sem apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são capazes de apontar sua presença. Um copo d’água livre de coliformes fecais pode conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves.
IHU On-Line – O que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles pela água?
Fernando Spilki – São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato digestivo, chamados entéricos.
Um indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em uma defecação. Sem o devido tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia hidrográfica.
IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando Spilki – A hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de entender o processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitido aos seres humanos pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções subclínicas (sem nenhum sinal visível) até hepatites graves. É uma doença emergente em nível mundial. Na nossa Bacia dos Sinos ainda não detectamos o vírus na água, mas em outras regiões do Rio Grande do Sul, onde há maior presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU On-Line – Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da água do Rio dos Sinos?
Fernando Spilki – Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva por exemplo), o que já foi observado em outros locais.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando Spilki – Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos elevar de forma expressiva os índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos em conta que na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos processos de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que há a necessidade de essas novas tecnologias terem um custo baixo e serem de adoção fácil.
“Na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido”
IHU On-Line – Por outro lado, quais são as dificuldades do sistema de saúde brasileiro no que se refere ao tratamento de doenças causadas pela água contaminada?
Fernando Spilki – Isso é de fato preocupante. Há todo um sistema de trabalho baseado na ideia de uma nova configuração da população, de seu envelhecimento e do aumento da frequência de doenças crônicas e um maior preparo dos sistemas de ensino, pesquisa e mesmo de atendimento para lidar com essas situações. Isso está sem dúvida correto, mas não podemos esquecer que não vencemos no Brasil a etapa de controlar e tratar as doenças transmissíveis. Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento.
IHU On-Line – Os padrões estipulados para a qualidade da água, pela resolução CONAMA 274 de 29 de novembro de 2000, são adequados ou precisariam ser revistos?
Fernando Spilki – Esta e outras portarias e regulamentações, incluindo a Portaria MS Nº 2914 de 2011, que versa sobre a água potável, ainda foram formuladas sob uma óptica de restrições técnicas e orçamentárias para a adoção de marcadores mais fidedignos de segurança para a saúde dos consumidores e do ambiente. Essas normativas estão mais adequadas às necessidades e capacidades instaladas de órgãos reguladores e das próprias concessionárias de produção de água e tratamento de esgoto. Não só no caso de vírus, mas também para outros microrganismos, poluentes orgânicos emergentes e outros parâmetros notavelmente importantes hoje, a adoção foi em muitos casos negligenciada, seja em virtude de custos, dificuldade na implantação de protocolos ou mesmo inabilidade ou morosidade dos sistemas de vigilância e produção em renovar suas abordagens.
Considero grande parte desse pensamento anacrônico; grande parte dessas metodologias especialmente de monitoramento teve custo muito reduzido nessa última década e há hoje muito mais pessoal treinado para execução dessas análises. Há sim que haver uma revisão constante desses parâmetros. Da parte da investigação científica, uma preocupação que devemos ter é buscar inovação no sentido de desenvolver protocolos mais simples, robustos e baratos, seja para monitoramento ou tratamento dessas novas ameaças presentes na água. Só assim lograremos um conjunto de parâmetros de qualidade da produção de água e tratamento de esgoto que esteja de fato focado nas pessoas e nos ecossistemas e não apenas nas limitações técnicas ou orçamentárias dos entes envolvidos.
Por Patricia Fachin para o portal Ecodebate
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/10/02/a-contaminacao-das-aguas-e-a-disseminacao-de-doencas-de-proliferacao-hidrica/
“As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
Segundo o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a ‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades”, pontua.
Na entrevista a seguir, Spilki comenta que além da falta de tratamento do esgoto, as águas contaminadas são um potencial para o desenvolvimento de uma série de vírus causadores de doenças. “Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento”.
Fernando Spilki é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veterinárias pela UFRGS, na área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente leciona na Universidade Feevale.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as causas da contaminação das águas brasileiras? A água de todas as regiões brasileiras está contaminada?
Fernando Spilki – As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX. Essa expansão se deu de forma fragmentada, sem planejamento adequado. Justamente por isso, pela falta de planejamento, e por uma óptica que já podia ser considerada anacrônica mesmo para a época, os corpos d’água foram em muitos momentos considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a “diluição é a solução”, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades.
Outros determinantes históricos importantes foram a concepção dos militares de que governo e desenvolvimento estavam ligados a grandes obras de distribuição de água potável, sem considerar a necessária expansão na outra via de coleta e tratamento de esgoto e o foco do crescimento baseado na indústria e na revolução verde, em muitos casos a qualquer custo do ponto de vista ambiental. De alguns destes males não estamos livres até hoje, mesmo passadas décadas do processo de redemocratização. Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos. Ainda que esforços tenham sido feitos pelas indústrias, muito em virtude da evolução dos processos de fiscalização, em todo o Brasil ainda são notificados em grande número problemas relacionados ao descarte inadequado de efluentes industriais. E ainda há a questão dos dejetos de produção animal e agrícola, que não são de modo algum negligenciáveis.
Quanto à segunda questão, os dados da Agência Nacional de Águas – ANA e de inúmeros pesquisadores mostram que lamentavelmente em todas as regiões pode-se sim observar problemas quanto à qualidade da água. Alguns problemas como a eutrofização (crescimento de algas que afeta a viabilidade dos corpos hídricos em sustentar a vida), a contaminação por diferentes microrganismos e poluentes químicos podem ser notadas em diversas regiões, praticamente onde quer que se busque.
IHU On-Line – O que a análise microbiológica da Baía de Guanabara revela sobre a qualidade da água da Baía?
Fernando Spilki – Essa análise que conduzimos junto à agência de notícias Associated Press não revela algo desconhecido, os problemas de qualidade da água no contexto da Baía da Guanabara são descritos de longa data, mas infelizmente parece que sempre temos de avisar sobre questões que vão sendo deixadas de lado. A própria presença de vírus causadores de doenças de veiculação hídrica na Lagoa Rodrigo de Freitas e nas praias mais frequentadas tem antecedentes. A Fiocruz produziu, num passado recente, excelentes estudos sobre o mesmo tema. Aquela situação nada mais é que o resultado dessas questões de um processo de crescimento dos grandes centros urbanos não acoplados a um plano de desenvolvimento que contemplasse a questão do esgoto doméstico. São hoje em torno de 13 milhões de pessoas que vivem naquele entorno, com um sistema de tratamento de esgoto muito aquém do ideal.
Não é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, mas é emblemático, pois trata-se de um cartão postal maravilhoso do país, com um povo alegre e hospitaleiro como poucos, daí o impacto que teve esse estudo, claro que associado à questão olímpica.
O que esperamos é que toda essa polêmica gerada tenha reflexos para depois e além da Olimpíada: que se repense o manejo do esgoto doméstico naquele ambiente e que seja de fato beneficiada a população residente no Rio de Janeiro. E tomara que toda essa discussão sirva também de alerta no resto do Brasil. Outra questão relevante é de trazer à tona a questão de parâmetros e medidas mais adequados ao século XXI para monitoramento da segurança e qualidade da água.
“Esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves”
IHU On-Line – Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando Spilki – Quando pensamos em doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d’água pelos dejetos sem apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são capazes de apontar sua presença. Um copo d’água livre de coliformes fecais pode conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves.
IHU On-Line – O que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles pela água?
Fernando Spilki – São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato digestivo, chamados entéricos.
Um indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em uma defecação. Sem o devido tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia hidrográfica.
IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando Spilki – A hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de entender o processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitido aos seres humanos pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções subclínicas (sem nenhum sinal visível) até hepatites graves. É uma doença emergente em nível mundial. Na nossa Bacia dos Sinos ainda não detectamos o vírus na água, mas em outras regiões do Rio Grande do Sul, onde há maior presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU On-Line – Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da água do Rio dos Sinos?
Fernando Spilki – Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva por exemplo), o que já foi observado em outros locais.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando Spilki – Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos elevar de forma expressiva os índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos em conta que na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos processos de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que há a necessidade de essas novas tecnologias terem um custo baixo e serem de adoção fácil.
“Na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido”
IHU On-Line – Por outro lado, quais são as dificuldades do sistema de saúde brasileiro no que se refere ao tratamento de doenças causadas pela água contaminada?
Fernando Spilki – Isso é de fato preocupante. Há todo um sistema de trabalho baseado na ideia de uma nova configuração da população, de seu envelhecimento e do aumento da frequência de doenças crônicas e um maior preparo dos sistemas de ensino, pesquisa e mesmo de atendimento para lidar com essas situações. Isso está sem dúvida correto, mas não podemos esquecer que não vencemos no Brasil a etapa de controlar e tratar as doenças transmissíveis. Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento.
IHU On-Line – Os padrões estipulados para a qualidade da água, pela resolução CONAMA 274 de 29 de novembro de 2000, são adequados ou precisariam ser revistos?
Fernando Spilki – Esta e outras portarias e regulamentações, incluindo a Portaria MS Nº 2914 de 2011, que versa sobre a água potável, ainda foram formuladas sob uma óptica de restrições técnicas e orçamentárias para a adoção de marcadores mais fidedignos de segurança para a saúde dos consumidores e do ambiente. Essas normativas estão mais adequadas às necessidades e capacidades instaladas de órgãos reguladores e das próprias concessionárias de produção de água e tratamento de esgoto. Não só no caso de vírus, mas também para outros microrganismos, poluentes orgânicos emergentes e outros parâmetros notavelmente importantes hoje, a adoção foi em muitos casos negligenciada, seja em virtude de custos, dificuldade na implantação de protocolos ou mesmo inabilidade ou morosidade dos sistemas de vigilância e produção em renovar suas abordagens.
Considero grande parte desse pensamento anacrônico; grande parte dessas metodologias especialmente de monitoramento teve custo muito reduzido nessa última década e há hoje muito mais pessoal treinado para execução dessas análises. Há sim que haver uma revisão constante desses parâmetros. Da parte da investigação científica, uma preocupação que devemos ter é buscar inovação no sentido de desenvolver protocolos mais simples, robustos e baratos, seja para monitoramento ou tratamento dessas novas ameaças presentes na água. Só assim lograremos um conjunto de parâmetros de qualidade da produção de água e tratamento de esgoto que esteja de fato focado nas pessoas e nos ecossistemas e não apenas nas limitações técnicas ou orçamentárias dos entes envolvidos.
Por Patricia Fachin para o portal Ecodebate
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/10/02/a-contaminacao-das-aguas-e-a-disseminacao-de-doencas-de-proliferacao-hidrica/
Postado por
Dr. Frederico Lobo
às
23:39
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