Uma das experiências mais impactantes da minha vida. Relato completo de um retiro de meditação (vipassana) de 10 dias em silêncio, meditando cerca 10 horas por dia.
Atenção relato completo da experiência de realizar um vipassana. Não entramos em detalhes da técnica, já que esta só deve ser ensinada por um professor devidamente atribuído para tal. No final deste relato apontamos links de onde você pode encontrar tais locais devidamente preparados.
Réveillon, época de se esbanjar com comidas diferentes, estourar champanhe, fogos de artifício, pular 7 ondas e dar muita festa, correto?
E se eu te disser que existem pessoas que passaram em silêncio, sem ver nem ouvir fogos de artifício, sem vestir roupa branca e sem dizer feliz ano novo a meia noite do dia 31 de dezembro? Você vai dizer: loucos. Pois é, existiam 100 loucos lá. Foi dessa forma que eu e mais 99 pessoas passamos o réveillon dessa vez. 50 homens e 50 mulheres que decidiram sair completamente da sua zona de conforto e passar a virada do ano de uma forma bem diferente.
Vipassana é uma técnica de meditação redescoberta por Buda (Gotama) há mais de 2.500 anos. Significa “ver as coisas como realmente são”, que busca erradicar o sofrimento humano por completo, trata-se de uma arte de viver.
Para aprender vipassana é necessário um curso completo de 10 dias! Sim, você dedicará 10 dias da sua vida, e, além disso, 10 dias em silêncio. O que é silêncio? É não falar absolutamente nada, e mais que isso, além da não fala oral, não pode se comunicar com gestos e nem olhares. Ou seja, você está cercado de pessoas a seu redor, mas não pode falar com elas. Isso é feito por diversos motivos que são explicados durante o curso, mas o principal é aquietar a mente. Se já é difícil se concentrar em silêncio, imagina no meio de uma tagarelice. Além disso em todos os templos do mundo, de todas as culturas, meditação e fala não combinam. Acredito que desde quando aprendemos a falar quando éramos crianças e por nossa vida toda, não ficamos 10 dias em silêncio, aliás, nem metade disso.
Preparação
A preparação para o retiro começa bem antes, 3 meses, faz a inscrição on-line e aguarda ser aceito. E acredite as vagas se esgotam no mesmo dia que as inscrições são abertas. Portanto para quem vai realizar o curso em dezembro, no mês de setembro você tem que planejar a sua vida para passar 10 dias sem telefone, internet e sem nenhuma conexão com o mundo. É preciso muito desapego. Fique tranquilo você pode informar um número de telefone do local do retiro para seus familiares, e caso aconteça algo urgente elas podem entrar em contato com o local do retiro e eles irão te informar.
Eu já tinha feito este curso anteriormente, também no réveillon. O curso tem o ano todo, porém no período de 26 de dezembro à 06 de janeiro é a única que conseguia ficar 10 dias fora, e é a data preferida das pessoas por conta de trabalho, a maioria das empresas param para recesso coletivo e por isso fica mais fácil para fazerem o curso. Também prefiro essa data pois no final do ano ficamos muito introspectivos, fazemos um balanço de nossa vida, o que conquistamos, e o que desejamos a frente.
Para mim nesta segunda vez, estava sendo mais difícil ainda. Agora minha esposa estava fazendo o curso pela primeira vez. Ficaríamos 10 dias nos vendo a distância, sem poder conversar ou aproximar-nos. Então é normal ficar preocupado, querer saber se o outro está bem ou não. Mais um apego para ser superado.
Estrutura do local
Fizemos o curso em um local chamado Dhamma Santi em Miguel Pereira – RJ. Existem centros espalhados no mundo todo. No Brasil também tem em outros locais. A estrutura física é excelente. Tudo limpo, organizado, bem construído, alimentação ovo lacto vegetariana com um cardápio muito equilibrado, quartos individuais ou coletivos e banheiros e vestuários masculinos e femininos e para a felicidade da minha esposa: com chuveiro quente! É de se surpreender toda essa estrutura, pois afinal estamos em uma serra, cercados por mata virgem.
Tudo funciona muito bem. Quem dera as empresas tivessem essa organização. Tudo é dividido por áreas e responsáveis. E acredite, tudo, absolutamente tudo, desde os 33 hectares do terreno até quem trabalha no local é realizado por meio de trabalho voluntário e doações! Ninguém, incluindo os professores ganham 1 centavo sequer. Eles estão lá por outra recompensa: ajudar outras pessoas assim como foram ajudados. Um aluno que conclui o curso pode servir (trabalhar) em outros cursos. Os estudantes ficam tão contentes com os resultados do curso e com o impacto causado em suas vidas, que desejam compartilhar, desejam que outros também tenham essa experiência, afinal como é dito no filme “Na natureza selvagem” (Into the wild) “a felicidade só é real quando compartilhada”.
Quem pode fazer
O curso pode ser feito por qualquer pessoa de qualquer idade (inclusive existem cursos para crianças), e já foi ministrado até em presídios com excelentes resultados, e que rendeu um documentário (link no final do texto), e claro que estejam bem de saúde e dispostas fisicamente, pois apesar de ser um curso de meditação é uma grande prova para o corpo, suportar 10 horas por dia meditando. É difícil para a coluna, pés, joelhos, etc. Mas engana-se quem acha que isso é só para os jovens, fiquei surpreso com a quantidade de pessoas mais velhas, tanto homens quanto mulheres. E a maioria deles já tinha feito vários cursos. Isso é normal entre os estudantes, após concluir o curso conversei com vários e trocamos contatos, inúmeros estavam realizado o curso pela 4ª, 8ª, 10ª vez e assim vai.
A experiência
Posso confessar a vocês que não é fácil. E não é fácil pela primeira vez, não é fácil para quem faz pela segunda vez, e dizem que não é fácil para quem faz pela décima vez. Porém crescemos justamente nas dificuldades. Ao fazer um curso de vipassana você se supera a cada momento. Cada dia é diferente. Em alguns momentos sua meditação flui bem, em outros momentos você não consegue se concentrar, e às vezes você até pensa em ir embora! É preciso muita, muita determinação, isso é chamado de Adhitthana – firme determinação. É falar para si mesmo: vou concluir não importa o que aconteça, seja a dor, tédio, calor, frio ou qualquer outra dificuldade. É falar para si mesmo a todo instante na meditação, não vou me levantar mesmo que minhas pernas doam. Esta mesma firme determinação que precisamos levar essa firme determinação para nossas vidas.
Nossa mente tenta arrumar diversas desculpas: ah estou com dor, está calor, fulano está se mexendo muito e está me atrapalhando, etc. É aí que superamos, é aí que nos mostramos forte e vencemos nossa mente.
Os alunos que já fizeram o curso uma vez ficam mais a frente, e os novos um pouco para trás. Isso é bom, pois servem de exemplo aos mais novos. Eu estava passando por alguns dias difíceis, de dor nas pernas, e quando olhava na fileira da frente tinha um senhor, aparentando cerca de 70 anos, e estava totalmente concentrado e imóvel. Ele chegava vagarosamente, andando cuidadosamente, se ajoelhava (cada um pode ficar na posição que preferir desde que mantenha a coluna ereta) e ficava imóvel por 30 minutos, 1 hora, 2 horas. Um exemplo! Ai eu pensava: E eu aqui reclamando. No final do curso fiz questão de conversar com ele, dizer que me inspirou muito nos momentos difíceis, mesmo sem saber seu nome, e nunca termos conversado, sua atitude me ajudou. E para minha surpresa descubro que ele estava no 26° curso! E com toda humildade disse: continua não sendo fácil.
Cada dia é uma nova experiência. As refeições e horários de meditação são avisados com o toque do sino. Nos primeiros dias, mal conseguia ouvir o sino, e tinha receio de perder a hora. Depois de alguns dias, o sino chegava a me incomodar de tão alto, parecia que estavam tocando na janela do meu quarto ou dentro do meu ouvido. Mas o volume sempre foi o mesmo, a diferença é que minha mente se tornou atenta a tudo. Percebi o quanto vivemos distraídos, e muitas vezes não percebemos as coisas que acontecem a nossa volta. Na sala de meditação, em total silêncio, é possível ouvir o engolir de saliva do seu colega ao lado. Você percebe sons que sempre estavam presentes, mas nunca conseguiu notar devido ao barulho externo, e devido ao barulho da sua mente.
Aprendemos humildade. Ficamos bravos quando a pessoa do nosso lado levanta e faz barulho e nos incomoda, mas em determinado momento precisamos ir ao banheiro e percebemos que por mais silenciosamente que levantemos, também vamos atrapalhar quem está do nosso lado.
Portanto ao realizar vipassana, além da maravilhosa técnica que você aprende você irá se conhecer mais, e aprender inúmeras outras coisas, que não cabe descrever aqui, afinal, para cada um é uma experiência diferente. Apenas vivendo você poderá comprovar.
Custo
Bom, a essa altura espero ter motivado você a conhecer esse curso. Espero ter colocado uma curiosidade em viver tudo isso. Comece a se planejar, não precisa de afobação, o curso tem o ano todo, programe-se com calma, o importante é ir. Então você deve estar se perguntando afinal quanto custa tudo isso, 10 dias de alimentação, hospedagem e curso. Aí vem a maior das surpresas. Lembra que te disse que todos que estão lá, incluindo os professores não são remunerados? Pois bem, o curso é pago com doações! Isso mesmo, você paga o quanto puder, sem limite mínimo nem máximo. Tem gente que doa pouco, tem gente que doa muito, tem gente que doa materiais, mantimentos, e tem gente que doa serviço. Cada um oferece o que pode! É isso que faz de tudo tão maravilhoso. E você deve pensar, ah mais isso não sobrevive. Pois bem é assim que esse local e inúmero outro vem fazendo e crescendo durante muitos e muitos anos. Provavelmente se eles cobrassem quantias absurdas ou estipulassem um preço não teriam sobrevivido por todo esse tempo.
A volta
Bom, claro que a volta ao “mundo real” é um pouco diferente. Ao sair à primeira coisa que estranhei foram os barulhos, carros, buzinas. Lá era tudo tão silencioso, ouvia os sons dos insetos, ouvia meu coração pulsando. Lá tudo funcionava bem, harmoniosamente, e aqui não é tudo assim. Temos nossos trabalhos, temos trânsito, etc. Como fica? É aí que entra a questão principal, técnica e prática devem caminhar juntas. Toda a filosofia do mundo não serve para nada se não for aplicada. É no dia a dia que você vai se testar e ver os benefícios que o curso trouxe para a sua vida. Para mim demorou um tempo para tudo fazer sentido, não foi imediato. Quando terminei o primeiro curso não imaginava que voltaria tão rápido. Depois de um tempo que tudo fez sentido, e vi que precisava voltar e aprofundar na técnica.
Ao sairmos do Dhamma Santi pegamos um táxi e perguntamos para o motorista o que tinha acontecido no mundo nos últimos 10 dias. Afinal foram 10 dias desconectados, muita coisa deve ter acontecido, pensamos. E ele nos contou algumas coisas: “um acidente, aquela tragédia e outro escândalo”. Puxa, não mudou muita coisa. Ao ligar para a família, todos estavam bem e nada de muito diferente aconteceu. O que parecia um absurdo: 10 dias ausentes sem nenhum contato com o mundo externo, não foi tão absurdo assim.
Dê esse presente a você mesmo, permita-se viver uma experiência completamente diferente de tudo o que viveu até hoje. Ah, mas eu não tenho tempo, ah, mas eu não consigo ficar 10 dias sem falar, ah mais isso, ah mais aquilo… Vença as suas próprias objeções! Afinal para fazer vipassana, a superação começa muito antes da ida.
Que todos os seres sejam felizes!
Obs: Se você também já fez um curso de meditação vipassana conte a sua experiência nos comentários. Isso vai incentivar outras pessoas a participarem.
Links:
Site do local do retiro – Dhamma Santi
Datas do curso em Dhamma Santi (tem o ano todo, inscrições 3 meses antes dos cursos)
Documentário do curso realizado em presídio (em inglês)
Fonte: http://desfruteavida.com.br/o-que-um-retiro-de-10-dias-em-silencio-me-ensinou/
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