sexta-feira, 6 de maio de 2022

Uma conversa com o introdutor do ensino de Nutrologia no Brasil: Dr. José Eduardo Dutra de Oliveira

O ensino de nutrologia em clínica médica é uma das propostas do médico e professor José Eduardo Dutra de Oliveira, referência no país em Nutrologia, especialidade médica que estuda e dá assistência a problemas relacionados aos nutrientes na saúde, nas doenças e no desenvolvimento e prevenção de moléstias crônicas degenerativas. 

Ele foi recentemente homenageado no Congresso Internacional de Ciências Nutricionais, na Tailândia, como uma das Living Legends do mundo, título oferecido aos médicos com mais de 80 anos de idade ainda em atividade.

É autor de mais de 300 artigos científicos em revistas nacionais e internacionais sobre nutrição e nutrologia, professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, professor visitante da Universidade de Cornell (Estados Unidos) e introdutor do ensino de Nutrologia no curso médico. 

Por sua sugestão, foram criadas as Unidades Básicas de Alimentação, Nutrologia e Saúde (Ubans) em todos os municípios brasileiros como centros de educação, tratamento e prevenção de doenças.

Diversas vezes atuou como consultor da Food and Agriculture Organization (FAO) da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Universidade da Organização das Nações Unidas (ONU). 

É membro da Câmara Técnica de Nutrologia do Cremesp. O professor Dutra, de 82 anos, mantém uma verdadeira cruzada em defesa da boa alimentação como um direito de todas as pessoas.

Nesta entrevista à Ser Médico, ele lamenta que os brasileiros alimentem-se mal em quantidade e qualidade e paguem por isso com aumento da obesidade, doenças do coração, diabetes e outras moléstias crônicas ligadas à alimentação e à nutrição. Ele destaca a necessidade de um maior número de médicos com conhecimentos especializados em Nutrologia e de melhor interação entre nutrólogos e médicos das outras especialidades e demais profissionais da área da saúde.

Ser Médico: Como o senhor caracteriza a Nutrologia?
José Eduardo Dutra de Oliveira: A Nutrologia é uma especialidade médica relativamente recente, que estuda e mostra a infl uência dos nutrientes da alimentação em todo o nosso organismo, por meio de exames clínico, bioquímico e funcional dos nutrientes. As mais tradicionais e clássicas doenças da nutrição eram as defi ciências de nutrientes, como escorbuto, beribéri, pelagra etc. Hoje, como nutrólogos, estudamos e tratamos
de problemas da saúde e de doenças ligadas a nutrientes, como dislipidemias, disproteinemias, obesidade, diabetes, nutrocardiopatias, síndrome metabólica, hipertensão e certos tipos de canceropatias. Foi demonstrado que todas têm relação direta ou indireta com nutrientes, saúde, estilo e qualidade de vida.

SM: Desde quando estudos demonstram o papel dos nutrientes da alimentação na saúde?
Dutra: Há muito tempo, o comer, o alimentar-se - como diz a própria palavra – demonstra quão básico e fundamental é para a saúde, vida e qualidade de vida. Quem deixar de comer, morre, e quem come mal, fi ca doente. Por outro lado, também já foi evidenciado que não só a quantidade, mas principalmente a qualidade dos
alimentos, sua composição em nutrientes, proteínas, gorduras, açúcares, minerais e vitaminas, são fundamentais à saúde e/ou causa primária ou secundária de diferentes doenças orgânicas.

SM: Ou seja, dependendo do que você come, pode ter doenças diferentes?
Dutra: Isso começou a ser demonstrado há séculos. Na época das grandes descobertas, por exemplo, os navios que partiam da Europa levavam várias e grandes quantidades de comida, mas não frutas e verduras. Alguns dos tripulantes começaram a ficar doentes, com um quadro de lesões cutâneas e hemorragias gengivais, que caracterizavam o quadro de defi ciência de vitamina C, o escorbuto. Em outros lugares, observaram que a deficiência de certas substâncias – posteriormente chamadas de vitaminas – era responsável por uma doença que se chamou beribéri. Manifestava-se em pessoas que se alimentavam com arroz degerminado. É também o caso da pelagra, nos Estados Unidos, que aparecia nos escravos com alimentação à base de milho, deficiente em niacina e triptofano. Já a má alimentação leva a um sem número de distúrbios nutricionais.

SM: O que poderia ser considerada uma boa alimentação?
Dutra: É aquela que tem muitos nutrientes ingeridos com os alimentos em várias refeições diárias e que fornece quantidade e qualidade de todas as substâncias nutritivas necessárias e essenciais ao funcionamento normal do organismo. Uma alimentação saudável e nutritiva inclui diversos tipos de alimentos que forneçam diariamente os nutrientes necessários e essenciais à nutrição humana. É para se lamentar que o brasileiro esteja perdendo o hábito de consumir arroz com feijão, duas boas fontes locais de energia e proteínas e que estão sendo substituídas por fast foods nem sempre nutricionalmente saudáveis.

SM: Como o médico nutrólogo faz o diagnóstico dos pacientes?
Dutra: O diagnóstico nutrológico é feito pelo exame clínico e análise nutrológica e diagnósticos bioquímico e funcional dos nutrientes. Todas as pessoas precisam fazer periodicamente um checkup nutrológico dos seus nutrientes, incluindo um nutrograma para verificar seu estado nutrimental e prevenir riscos de doenças nutricionais. A vida moderna, o sedentarismo, a má alimentação em quantidade e qualidade e até o aumento da sobrevida têm exposto as pessoas a um maior risco de várias doenças ligadas direta e/ou indiretamente a nutrientes, como dislipidemias, anemias, obesidade, cardiopatias, diabetes, hipertensão e outras nutropatias. Exames médicos nutrológicos periódicos – assim como os que existem na cardiologia, na oftalmologia, na ginecologia –, deveriam também ser feitos por todos.

SM: Como é realizado o tratamento e a prevenção das doenças nutricionais?
Dutra: O tratamento da doença nutricional, a nutroterapia, é aplicado à base de medicamentos e suplementos de nutrientes, com todas as substâncias que cientificamente tenham comprovada eficácia em curar ou prevenir distúrbios de nutrientes. Não é possível indicar, prescrever e monitorar os efeitos de um remédio ou de uma dieta sem o exame e diagnóstico médico clínico nutricional. Não se pode aceitar, do ponto de vista médico e ético, a indicação, prescrição de medicamentos e de dietas com objetivo de tratamento de doenças por profissionais não médicos. Infelizmente, até leigos rotineiramente se automedicam e utilizam as mais variadas dietas nas nutropatias. O tratamento de doenças em nutrologia, como em outras especialidades médicas, tem que ser sempre indicado, prescrito e baseado na avaliação médica clinica e laboratorial dos pacientes.

SM: A obesidade está se tornando um enorme problema mundial. Como preveni-la?
Dutra: Realmente, o excesso e o consumo exagerado de comida, ao lado de fatores genéticos e ambientais, têm tornado a obesidade a grande epidemia mundial atual. É preciso que se entenda que a obesidade é uma doença nutrológica, em geral, com distúrbios de vários nutrientes e não somente com aumento de peso. Há 60 ou mais anos, o grande problema médico mundial era a falta de alimentos, a fome. Ainda ela continua para uma boa parte da população mundial. Mas, para a maioria dos habitantes do mundo, nos países em melhor situação econômica e onde se implementaram indiscriminadamente programas de alimentação assistencialista, não se ensinou a comer. Com isso, começaram a aparecer e multiplicar o sobrepeso e a obesidade, tornando-se uma grande epidemia mundial.

SM: Muitos obesos estão se submetendo à cirurgia bariátrica para emagrecer. É uma solução?
Dutra: Não. É um procedimento que está na moda e que deve ser indicado em casos especiais e sob a supervisão médica, particularmente do médico nutrólogo. Retira-se uma parte do estômago do paciente e, assim, é dificultada a absorção de nutrientes no intestino delgado. Isso traz consequências muito sérias para a saúde. As pessoas operadas não emagrecem apenas, o organismo delas fica totalmente alterado, requerendo cuidados especializados pelo resto de suas vidas. A cirurgia bariátrica irá subsistir até que mais conhecimentos fisiopatológicos da obesidade sejam encontrados.

SM: Como tornar-se nutrólogo e fazer a interface da nutrologia com a clínica médica?
Dutra: O nutrólogo é um clínico geral especializado na avaliação clínica, no diagnóstico e no tratamento de doenças nutricionais. O grande problema de uma especialidade médica nova, como a nutrologia, é ter somente uma meia dúzia de escolas médicas com ensino, residência e pós-graduação, mestrado e doutorado na área. Então, médicos recém-formados têm uma ideia superficial e treinamento muito pequeno em nutrologia. Eles podem se tornar especialista se fizerem o curso da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) tomou a iniciativa pioneira de criar uma Câmara Técnica de Nutrologia – da qual faço parte – que, entre outras atividades, responde a consultas sobre nutrologia, nutroterapias, medicamentos, alimentos, cirurgias bariátricas etc. Procuramos mostrar, caracterizar e identificar cada vez mais o trabalho médico e ético da nutrologia
na medicina.

SM: Sendo a nutrologia tão importante para a vida e para a qualidade de vida, por que a maioria dos médicos dá tão pouca importância a ela?
Dutra: Quero acreditar, em primeiro lugar, que o motivo é que esta especialidade é nova, ainda pouco ensinada, e que os colegas médicos, os ministérios e secretarias de saúde e as assistências médicas pública e privada ainda não se aperceberam da sua importância. A Associação Médica Brasileira (AMB) já reconhece a Nutrologia como especialidade médica. Na América Latina, existe a Sociedade Latinoamericana de Nutrologia. Estamos também organizando uma Sociedade Médica Internacional de Nutrologia (International Medical Association of Nutrology), que cria, mundialmente, a Nutrologia. Temos que oferecer à população os benefícios que a especialidade traz à saúde e propomos que seja implantada em cada município uma Unidade Básica de Alimentação, Nutrologia e Saúde (Ubans).

Um cientista com visão social por Isac Jorge Filho*

Ele é sempre o primeiro a chegar e o último a sair de nossas reuniões na Câmara Técnica de Nutrologia do Cremesp. Se a gente não tomar Cuidado, fi ca com a palavra a reunião inteira. Está sempre propondo coisas e trabalhos novos. O leitor deve estar pensando que falo de um jovem colega entusiasmado com suas novas atividades. E acertou, falo mesmo de um “jovem há mais tempo”, graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo em 1951.

José Eduardo Dutra de Oliveira é um nutrólogo absolutamente envolvido com os problemas sociais. Seus trabalhos com aspectos alimentares das populações carentes na região de Ribeirão Preto tiveram impacto internacional. Como cientista, escolheu o caminho da pesquisa envolvendo os aspectos sociais da alimentação, ao mesmo tempo que, como cidadão, sempre participou de forma efetiva e prática da vida da comunidade.

A região de Ribeirão Preto tem forte vocação para a agricultura, antes com o café, agora com a cana-de-açúcar. Os lavradores levam suas refeições para o trabalho no campo, daí serem chamados de “boias-frias”. A base dessa alimentação é o clássico e brasileiríssimo “arrozfeijão”, tido por muitos – e por muito tempo –, como alimento “fraco”, predispondo a defi ciências nutricionais. O professor Dutra de Oliveira resolveu estudar essa mistura e as populações que a utilizam, mostrando que o nosso “feijão com arroz” é comida de bom padrão nutricional. Seu livro Boias-frias: uma realidade brasileira, coordenado por ele e por sua esposa e companheira de todos momentos, Maria Helena Silva Dutra de Oliveira, rodou o mundo.

Em seu livro, Ciências nutricionais: aprendendo a aprender, escrito em parceria com Sérgio Marchini, faz mensagem de alerta aos alunos, definindo que: “As ciências nutricionais, como multidisciplinares, são biológicas e sociais nos seus fundamentos e nas suas aplicações”. Dentro de sua ampla visão não deixou de incluir um capítulo, que tive a honra de escrever, destinado aos dilemas bioéticos na produção, industrialização e distribuição dos alimentos.

Dutra de Oliveira nunca se conformou com o que denomina “alimentos que não alimentam”, incluindo aí a maioria das balinhas e refrigerantes. Seu trabalho para enriquecer tais produtos com nutrientes é contínuo. Envolvido com a comunidade onde vive, conseguiu que sucos servidos na merenda escolar de algumas cidades fossem “reforçados” com sais de ferro, o que determinou claro impacto na diminuição do número de crianças com anemia ferropriva. Fez o mesmo com a água de algumas cidades.

Cidadão do mundo, soube por uma filha, que mora na Suíça, que a China havia convencido uma grande empresa internacional de refrigerantes a adicionar alguns nutrientes à sua bebida. Tentou fazer o mesmo aqui no Brasil. Não conseguiu, em um primeiro momento. Mas, certamente, a semente estava plantada e germinou: já começam a ser lançados em nosso país refrigerantes enriquecidos com nutrientes! Este avanço se deve à persistência e trabalho de Dutra de Oliveira, um cientista-cidadão que dedica sua vida a mostrar duas coisas que parecem tão simples e que muitos, preocupados exclusivamente com tecnologias de ponta, parecem esquecer: “que a boa alimentação é fundamental, como prevenção e tratamento de doenças” e “que precisamos de alimentos que, verdadeiramente, alimentem”.

Texto extraído de: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=471

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