Em outubro de 2021, o administrador Luiz Fernando Castro, 60, recebeu um diagnóstico inesperado: uma silenciosa cirrose no fígado havia evoluído para um câncer e era preciso um transplante do órgão.
À época, pesava 120 kg, estava hipertenso e era diabético. Anos antes, havia descoberto uma esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado), mas diz que não levou a condição muito a sério.
"Minha alimentação era completamente desregrada, comia sanduíches, salgadinhos, frituras, bebia dois litros de refrigerante por dia. Nunca fui sedentário, mas estava maltratando o meu organismo sem perceber."
Em outubro de 2022, após um ano na fila de espera do transplante, ele recebeu um novo fígado. Na mesma cirurgia, fez também uma bariátrica (redução de estômago). Hoje, um ano depois e com 76 kg, os níveis glicêmicos, de pressão arterial e de colesterol estão normais.
"Ganhei uma nova vida, uma nova chance. Se eu pudesse dar um conselho às pessoas eu diria: 'alimentem-se bem, cuidem-se'", diz ele, emocionado.
Casos como o de Castro têm se tornado cada vez mais comum. Nos principais centros transplantadores brasileiros, cerca de um terço das cirurgias já é decorrente de complicações da esteatose hepática. O acúmulo de gordura leva a uma inflamação do fígado que pode provocar cirrose e câncer.
Nos Estados Unidos, a cirrose causada por gordura no fígado ultrapassou o vírus da hepatite C no ranking das principais causas que levam a um transplante do órgão e hoje figura em segundo lugar, só perdendo para o álcool.
"Entre as mulheres já é a primeira causa. No homem é a segunda, vindo depois do álcool", diz o médico Henrique Sérgio Moraes Coelho, hepatologista do Hospital São Lucas Copacabana (Rio de Janeiro), ligados à rede Dasa. A instituição contabiliza 90 casos de transplantes decorrentes de complicações causadas pela esteatose hepática.
Segundo Coelho, pessoas acima de 60 anos, sedentárias, com uma longa história de obesidade, diabetes e hipertensão respondem pela maior parte desses casos. "É uma população que precisa ser bem avaliada antes do transplante por causa do risco cirúrgico."
Outro desafio é que de 20% a 30% das pessoas transplantadas devido a essa condição ganham peso depois do transplante e voltam a desenvolver quadros de esteatose hepática e, entre cinco e dez anos depois, têm risco de desenvolver uma cirrose novamente.
Por isso, um dos caminhos tem sido propor a cirurgia bariátrica associada ao transplante de fígado.
"Ainda é pouco frequente, mas já vem sendo mais utilizada. É um procedimento relativamente simples, que tira uma parte do estômago para tratar a obesidade do indivíduo que foi fazer um transplante de fígado", explica Ben-Hur Ferraz, diretor do Instituto do Fígado da rede Américas, do UnitedHealth Group.
Mas o que fazer para evitar que a pessoa atinja esse estágio tão dramático da doença? Para os especialistas, é preciso que tanto a população quanto os médicos não menosprezem a esteaose hepática, o início de todo esse processo.
O acúmulo de gordura no fígado não provoca sintomas, mas indica comportamentos de risco, por exemplo, dieta inadequada e sedentarismo, que levam ao sobrepeso e à obesidade.
Esses fatores de risco estão associados a um conjunto de outras condições que desregulam o organismo, como diabetes tipo 2, altos níveis de colesterol, de triglicérides e de hipertensão arterial (síndrome metabólica).
"A esteatose simples é um fígado gordo, que ainda não está sofrendo. Mas ela significa que alguma coisa de errado está acontecendo com o organismo. Então cuidar do que provocou aquela gordura é muito mais importante do que a condição [esteatose] em si", explica Luiz Eduardo Pinto da Fonseca, hepatologista do Centro do Aparelho Especializado em Aparelho Digestivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP).
Se o problema não for enfrentado com medidas preventivas, com o tempo pode gerar uma inflamação, chamada de esteatohepatite não alcoólica, uma lesão progressiva que pode afetar entre 10% a 30% das pessoas com esteatose, explica Ben-Hur Ferraz, da rede Américas.
"Nos pacientes que fazem parte de grupos de risco, com sobrepeso, obesidade, diabetes, dislipidemias, essa taxa é ainda mais alta. Tudo vai depender do número de fatores de risco que aumentam as chances disso evoluir. Bebe ou não bebe, é obeso ou não é, é diabético ou não é, é sedentário ou não é", diz.
Segundo Fonseca, do Oswaldo Cruz, não é infrequente o paciente chegar ao consultório do hepatologista com uma doença hepática mais avançada porque a esteatose não foi valorizada por outros colegas médicos. "Eles dizem: 'puxa vida, mas eu já tinha um ultrassom mostrando esteatose a xis anos e nunca o médico pediu para eu me preocupar.'"
Em até 20% dos casos, o quadro pode evoluir para fibrose, cirrose hepática ou para um câncer de fígado. "Isso só vai acontecer se nada for feito. Se o paciente conseguir emagrecer, diminuir o risco metabólico, tratar adequadamente o diabetes e as dislipidemias, essa evolução pode ser barrada", explica Coelho, do São Lucas Copacabana.
Além dos fatores de risco modificáveis, já foi descrito um gene, PNPLA, associado a essa condição. "A pessoa com essa mutação tem maior risco de evoluir para cirrose e câncer. Mas precisa também dos outros fatores metabólicos [modificáveis]", explica o médico.
Segundo Ferraz, a doença já se tornou uma das principais causas de câncer primário de fígado, conhecido como hepatocarcinoma.
"Ele tem aparecido em pessoas que ainda não desenvolveram cirrose, mas que têm a esteatohepatite. É um tumor silencioso, mas que se diagnosticado com 1, 2, 3 cm, tem 98% de cura. Se for diagnosticado com 7 cm e envolvendo a veia aorta do fígado, a gente pode falar hoje em tratamento paliativo em 100% das vezes", diz Ben-Hur Ferraz.
Segundo os médicos, não há medicamentos comprovadamente eficazes para tratar a esteatose hepática. Existem algumas drogas em estudos e outras linhas de pesquisa avaliando o impacto do uso dos novos remédios contra a diabetes e a obesidade nesses casos.
Fonseca, do Oswaldo Cruz, alerta para a propagação de mensagens enganosas sobre supostos medicamentos, "gotinhas milagrosas", para o tratamento do acúmulo de gordura no fígado.
"Isso não existe. A pessoa tá vendendo pela internet uma panaceia. Fujam dessas coisas mágicas, gotinhas para o fígado, dietas malucas. Isso é criminoso. A gente pode dar remédios para tratar o que está provocando [a obesidade ou a diabetes, por exemplo], ou, se o fígado estiver muito ruim, as complicações da doença hepática."
Para Ben-Hur Ferraz, também é preciso que os médicos e pacientes assumam um compromisso nessa linha de cuidados da esteatose hepática. "Precisamos entender as dificuldades do paciente e ajudá-lo nessa mudança [de estilo de vida]. Não adianta só dizer: 'não pode, não pode, não pode'. O paciente precisa entender que se ele não fizer nada agora vai viver mal lá na frente"
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