terça-feira, 22 de maio de 2018

CFM alerta: Pós-graduação não garante obtenção de título de especialista

A simples existência de um curso de pós-graduação lato sensu, ainda que reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC), não habilita o médico se anunciar como especialista, tendo somente valor acadêmico. Apenas duas formas podem levar o médico a obter a  especialização: 

  1. por meio de uma prova de títulos e habilidades das Sociedades de Especialidades filiadas pela Associação Médica Brasileira; 
  2. e/ou por residência médica reconhecidas pela Comissão Nacional de Residência Médica. 

O alerta é feito pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) que debateu o assunto em Sessão Plenária  em Brasília. “O CFM está atento a propagandas de alguns cursos de pós-graduação que induzem interpretação equivocada”, afirmou o presidente da entidade.

A Plenária do CFM ressaltou que o médico somente poderá anunciar especialidade quando estiver registrado o título no Conselho Regional de Medicina em que estiver inscrito.

Seguem algumas perguntas e respostas importantes:

1. Fiz pós-graduação lato sensu em área que não é considerada especialidade médica pelo CFM. Posso anunciá-la?
R: Não. Por terem potencial para confundir o paciente, esses títulos não devem ser anunciados.

2. Tenho pós-graduação em geriatria, mas não possuo o título de especialista. Posso inserir a palavra "geriatria" em meu carimbo?
R: Não. Para se apresentar como geriatra ou profissional de geriatria é preciso ter o título de especialista em geriatria, adquirido por meio do programa de residência médica ou por
avaliação de sociedade de especialidade reconhecida pelo CFM. O paciente deve ter absoluta clareza sobre a formação do médico que o atende.

3. Sou psiquiatra. A medicina do sono é uma área de atuação da psiquiatria. Não tenho título de sociedade relacionado a esta área, mas fiz pós-graduação lato sensu neste campo. Posso anunciá-la, já que esta área do conhecimento tem relação com a minha especialidade?
R: Não. Para anunciar-se como profissional de determinada área de atuação faz-se necessário ter título adquirido por meio do programa de residência médica ou por avaliação de sociedade de especialidade reconhecida pelo CFM. Adicionalmente, este
título deve ser registrado no CRM local. 

4. Sou cardiologista e fiz um mestrado em psiquiatria. Posso fazer referência a esse título no material de meu consultório de cardiologia, nos cartões de visita e em outras peças de
publicidade e papelaria?
R: Não. A resolução o impede associar títulos acadêmicos à sua especialidade médica quando não são da mesma área. O CFM entende que o anúncio desse título confunde o paciente. Esse tipo de anúncio induz o paciente a crer, por exemplo, que o mestrado torna o profissional um psiquiatra ou cardiologista mais habilitado, o que não é verdade. De qualquer modo, você pode anunciar todos os títulos que possui relacionados à sua
especialidade. Eles só precisam ser previamente registrados no CRM local.

5. Os treinamentos que realizei, mas que não resultaram em título acadêmico, relacionados com minha especialidade, podem ser anunciados?
R: Sim. Antes de anunciá-los, no entanto, você deve registrá-los no CRM local.


Saiba mais com a Resolução CFM nº 1634/2002:
(http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2002/1634_2002.htm).

domingo, 20 de maio de 2018

Luz como disruptor endócrino


A iluminação noturna é uma marca do mundo moderno, mas devemos lembrar que a eletricidade tem pouco mais de um século e nos milhões de anos anteriores de vida humana na Terra estávamos sujeitos a um ritmo diário preciso, com luz solar durante o dia e escuridão noturna.

Nesse sentido, será que a exposição à luz noturna não causa também perturbações no nosso metabolismo? E a resposta é: sem dúvida nenhuma. 
A conseqüência mais conhecida da presença de luz noturna é a redução da secreção de melatonina, um hormônio que sinaliza ao nosso corpo que é noite. Essa redução pode levar a distúrbios do sono, mas há vasto campo de pesquisa mostrando, em animais, que essa perturbação circadiana e redução da melatonina leva a alterações metabólicas como ganho de peso, resistência à insulina, diabetes tipo 2 e outras complicações. Em humanos, há menos dados, mas há sim evidências que pessoas expostas a excesso de iluminação tem saúde metabólica pior.

Uma das hipóteses seria que a melatonina ajuda nosso corpo a realizar a lipólise (quebra de gordura) e aumenta o gasto energético por aumentar nossa gordura marrom, uma gordura que usa energia para fazer calor, mais ativa durante o frio, para nos proteger, mas que possa se ativar em outras condições. Esse é o tema da minha tese de doutorado, que estou para concluir e pretendo em breve trazer novidades. Vou também discutir outros aspectos relacionados ao tema nas próximas semanas. Mas independentemente disso, o tema é muito fascinante e mostra como há muitas outras razões além do "comer muito e se exercitar pouco" na causa da obesidade.

Atenção: isto não significa que usar melatonina emagrece; esse pode ser tema de outra postagem --> apenas que a perturbação do nosso ritmo diário, em que a redução da melatonina é uma das características, pode ser uma causa de ganho de peso no longo prazo! 
Para quem se interessa, coloco um artigo sobre o assunto no link, em inglês.


Autor: Dr. Bruno Halpern

Fiocruz divulga nota contra flexibilização de lei sobre agrotóxicos

Em Nota Pública, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) se posiciona de forma contrária ao Projeto de Lei 6299/02, que trata do registro de agrotóxicos no país, com votação prevista no Congresso Nacional nesta terça-feira (8/5). Para a Fundação, o projeto visa alterar em profundidade o Marco Legal sobre o tema (lei 7.802/1989), que negligencia a promoção da saúde e a proteção da vida, e configura uma desregulamentação que irá fragilizar o registro e reavaliação desses produtos no Brasil. A proposta significa um retrocesso que põe em risco a população, em especial grupos populacionais vulnerabilizados como mulheres grávidas, crianças e os trabalhadores envolvidos em atividades produtivas que dependem da produção ou uso desses biocidas.

A instituição vem produzindo pesquisas que evidenciam os impactos negativos dos agrotóxicos para a saúde, o ambiente e a sociedade. A Fiocruz ressalta que o cenário de enormes vulnerabilidades sociais e institucionais existentes na maioria dos territórios onde há uso de agrotóxicos, que interferem diretamente na ocorrência dos casos de intoxicação, constitui uma situação verdadeiramente preocupante, e que pode ter repercussões graves e irreversíveis para gerações atuais e futuras.

Confira a nota na íntegra:

Nota pública contra a flexibilização da legislação de agrotóxicos
A expansão das commodities agrícolas impulsionou o mercado de agrotóxicos no Brasil, que hoje configura-se como um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. O uso desses biocidas representa um grave problema de saúde pública devido tanto à toxicidade dos produtos quanto às enormes vulnerabilidades socioambientais e político-institucionais que o país enfrenta.

As recentes mudanças na conjuntura política no país impuseram uma série de medidas na seguridade social, observadas principalmente a partir das perdas de direitos presentes na reforma trabalhista realizada sem um amplo debate junto à sociedade brasileira e também pela ameaça de uma reforma previdenciária, realizadas para atender aos interesses do grande capital. É neste bojo que se coloca a retomada da pauta das mudanças no marco legal de registro de agrotóxicos no país, cujas alterações propostas foram agrupadas em um conjunto de projetos de lei denominado “Pacote do Veneno”, capitaneado pelo agronegócio e que busca flexibilizar o registro de agrotóxicos ao alterar em profundidade a lei 7.802/1989, negligenciado a promoção da saúde e proteção da vida.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem como missão institucional promover a saúde e o desenvolvimento social, gerar e difundir conhecimento cientifico e tecnológico e ser um agente de cidadania, sendo pautada pelo compromisso ético de produção de uma ciência crítica e engajada em defesa da saúde e do ambiente. Historicamente, a instituição vem produzindo pesquisas que evidenciam os danos relacionados ao uso dos agrotóxicos para a saúde, o ambiente e a sociedade, demonstrando claramente seus impactos. Do mesmo modo, a Fiocruz tem divulgado notas públicas evidenciando estes impactos e alertando para o risco do uso de agrotóxicos. Assim, a Fiocruz não pode se eximir de posicionar-se publicamente diante de situações que representem a negação de seu compromisso ético e institucional, e mesmo do própria conhecimento científico.

Nesse contexto, a Fiocruz se coloca contrária ao Projeto de Lei 6.299/2002, com votação prevista para 8 de maio de 2018 no Congresso Nacional e que, se aprovado, irá fragilizar o registro e reavaliação de agrotóxicos no país, que hoje tem uma das leis mais avançadas no mundo no que se refere à proteção do ambiente e da saúde humana.

As principais mudanças propostas incluem:

•    A mudança do nome “agrotóxicos” pelas expressões “defensivo fitossanitário” e “produtos de controle ambiental” em uma estratégia que oculta as situações de risco ao comunicar uma falsa segurança desses produtos químicos;

•    A centralização do poder decisório sobre a regulação dos agrotóxicos no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). De acordo com as alterações propostas, caberá ao Mapa a análise toxicológica e ecotoxicológica para a aprovação de registro de produtos, hoje atribuições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Também caberá ao órgão o estabelecimento de diretrizes para reduzir os impactos dos agrotóxicos sobre o ambiente e a saúde humana, dentre outras funções. Com as mudanças estes órgãos passarão a ter papel meramente consultivo, em uma estratégia que suprime a atuação reguladora do Estado ao deixar decisões que deveriam ser técnicas nas mãos do mercado;

•    A inserção da análise de risco, permitindo que produtos que hoje têm o registro proibido em função do perigo que representam – como aqueles que causam câncer, mutações, desregulações endócrinas e más-formações congênitas – passem a ter o registro permitido se o risco for considerado “aceitável”, banalizando o risco.

As alterações propostas representam um retrocesso que põe em risco a população, em especial grupos populacionais vulnerabilizados como mulheres grávidas, crianças e os trabalhadores envolvidos em atividades produtivas que dependem da produção ou uso desses biocidas. Somando-se a isso o cenário de enormes vulnerabilidades sociais e institucionais existentes na maioria dos territórios onde há uso de agrotóxicos, que interferem diretamente na ocorrência dos casos de intoxicação, tem-se uma situação verdadeiramente preocupante, e que pode ter repercussões graves e irreversíveis para gerações atuais e futuras, com custos de curto, médio e longo prazo.

A regulação de agrotóxicos não pode ser tratada de forma simplista, com a proposição de mudanças voltadas para atender aos interesses do mercado. A falsa justificativa de que é preciso “dar celeridade aos processos de registro” trata as avaliações hoje conduzidas como burocracias desnecessárias que representam entraves à economia, sendo esse um entendimento equivocado e perigoso que pode trazer prejuízos incomensuráveis para a saúde, o ambiente e a sociedade. Ao invés de resolver a precarização técnica e humana da estrutura reguladora, propõem sua desregulação. É preciso que haja rigor no processo de avaliação e que sejam ofertados aos órgãos competentes, tais como a Anvisa e o Ibama, condições adequadas de trabalho – materiais e pessoais – para que o processo de avaliação e registro de agrotóxicos possa ser conduzido com todo o rigor necessário para a proteção da vida e a defesa de um ambiente equilibrado.

A Fiocruz reafirma seu compromisso de defender o ambiente e a saúde, compreendendo que os interesses econômicos jamais podem se sobrepor aos de defesa da vida.”

Declínio da fertilidade masculina. Um caso ainda pouco estudado de suicídio ecológico; análise de Luiz Marques (IFCH/Unicamp)

A revista Nature ecology & evolution acaba de publicar um trabalho intitulado “Suicídio ecológico em micro-organismos” [I]. O artigo lembra que, ao lado de interações sociais positivas nas quais cada indivíduo beneficia-se das ações coletivas de seus pares, constata-se também o seu inverso:
“Organismos podem, da mesma forma, mostrar interações negativas ao mudar o meio ambiente em maneiras que lhes são prejudiciais, por exemplo, por depleção dos recursos ou por produção de subprodutos tóxicos”.
Os autores observam nesse trabalho que, quando uma população de uma espécie de bactéria de solo, a Paenebacillus, é alimentada de modo a permitir reprodução ilimitada, essas bactérias “modificam o pH ambiente em tal grau, que essa alteração leva a uma rápida extinção de toda a população, um fenômeno que chamamos suicídio ecológico”.
O artigo já recebeu um número muito grande de citações. Além disso, por suas óbvias relações com o comportamento de nossa espécie, teve forte impacto também fora do círculo estrito dos especialistas em microbiologia. Ele foi repercutido, por exemplo, por um artigo na revista Cosmos, no qual se lê: “como os humanos são hoje bem conscientes, transformar o meio ambiente pode ter efeitos colaterais negativos. A poluição gerada pelos humanos ameaça os ecossistemas e espécies por todo o globo e está inclusive alterando o clima do planeta”. O artigo do The New York Times explicita já em seu título a semelhança desse comportamento bacteriano com o nosso: “Uma população que polui a si mesma até a extinção (e não se trata de nós)” [II]. E no Brasil o título do artigo de Fernando Reinach a respeito desse trabalho encerra todo um programa: “Compreender o suicídio ecológico das bactérias pode sugerir maneiras de evitar a nossa própria extinção” [III].
Espécie ou sociedade capitalista?
Esse paralelismo entre nós e algumas espécies de micro-organismos, sublinhado pelos três artigos acima citados, teria um fundamento biológico? Em outras palavras, pode-se identificar no comportamento dos homens, como espécie, uma propensão para o suicídio ecológico? Talvez sim, dada a sua agressividade ímpar no reino animal, exercida contra outras espécies e contra si própria. Não é, contudo, neste espaço que essa imensa questão, talvez sem resposta, poderia ser discutida. O que é possível, em todo o caso, afirmar é que a racionalidade a partir da qual o capitalismo estrutura a sociedade, impondo-lhe uma concepção redutora e mercadológica das relações entre o homem e seu habitat, é fortemente indutora de suicídio ecológico. Ao potenciar e glorificar o comportamento predador e o ganho sobre a “presa” (seja essa “presa” o trabalhador, o consumidor, o outro empresário, a sociedade como um todo, as outras espécies ou os ecossistemas em geral), o capitalismo age como um mecanismo de retroalimentação positiva das pulsões agressivas da espécie humana, que se traduzem, no limite, numa dinâmica sistêmica de suicídio ecológico.
As três vias do suicídio ecológico
A agressividade expansionista do sistema capitalista, seja ele de tipo “liberal” ou autoritário, é responsável pela corrida armamentista que levou, com o desenvolvimento dos pesticidas industriais, às armas químicas na Primeira Guerra Mundial e, com o desenvolvimento da física, às armas nucleares na segunda. É bom lembrar que o modelo insuperável de sociedade capitalista “liberal”, os EUA, foi o único país a ter usado duas vezes a arma nuclear, e contra a população civil, no Japão em 1945, embora ciente de que este estava militarmente derrotado e já vinha buscando a mediação de Stalin para oferecer aos aliados uma rendição “honrosa” [IV]. A luta travada, desde então, pelas corporações e por seus Estados pelo controle das fontes de energia e dos mercados globais jamais permitiu considerar como remota a eventualidade de uma guerra nuclear. Mas por três outras vias a lógica da acumulação de capital e da concentração do consumo revela-se ecologicamente suicida. À medida que avançamos no século, essas três vias mostram-se sempre menos imprevisíveis que a ameaça nuclear.
A primeira via é o colapso das florestas e da biodiversidade em geral. A FAO State of the World forests 2012 informa que, dos 60 milhões de km2 de florestas que cobriam há poucos milênios o planeta, 38% foram completamente removidas, 57% estão fragmentadas ou degradadas, restando apenas 15% de florestas ainda intocadas pelos homens. Como afirma Michael Williams no epílogo de sua clássica síntese de 2000 sobre o desmatamento: “Quase tanta floresta foi derrubada no passado quanto nos últimos cinquenta anos”, o que equivale a dizer que entre 1950 e 2000 os homens suprimiram mais florestas que em toda a sua história até 1950 [V]. Os dados dos satélites analisados pelo Global Forest Watch mostram que apenas entre 2000 e 2012 as florestas do mundo perderam outros 2,3 milhões de km2. Dado que, como alertam a FAO, a ciência básica e o mais elementar bom senso, os homens não podem viver sem florestas, continuar desmatando na escala e ritmo impostos pelo carnivorismo galopante, pelo agronegócio e pelo Big Food internacional demonstra um comportamento inequivocamente suicida.
O segundo comportamento ecologicamente suicida acusa-se na emissão de CO2 e de outros gases de efeito estufa, sobretudo pela queima de combustíveis fósseis, que está alterando a química da atmosfera e aquecendo o clima do planeta. Aqui basta uma imagem para entendermos o nível de risco existencial a que a dinâmica expansiva do capitalismo global está expondo a humanidade e outras espécies: a curva de Keeling, que mede desde 1958 as concentrações atmosféricas de CO2.

Reprodução
Figura 1 – Evolução das concentrações atmosféricas de CO2 de 1958 a abril de 2018 no Observatório de Mauna Loa, no Havaí. Scripps Institution of Oceanography (University of California, San Diego).


A aceleração descrita por essa curva sempre mais íngreme é flagrante e os números a confirmam. Em 1880, as concentrações atmosféricas de CO2 eram de 280 partes por milhão (ppm). Oitenta anos depois, em 1960, elas haviam subido apenas 30 ppm, ultrapassando então 310 ppm. Mas menos de 60 anos depois, essas concentrações deram um salto de 100 ppm, ultrapassando 410 ppm durante todo o mês de abril de 2018. E continuamos a subir essa escada do nosso patíbulo ecológico, agora a uma taxa de 2,5 ppm por ano. Para piorar ainda mais o que já é espantoso, continuamos em plena aceleração. Como afirma Ralph Keeling, diretor do programa de monitoramento das concentrações atmosféricas de CO2 no Scripps Institution of Oceanography: “Essa taxa está aumentando. Na década de 2010 as concentrações estão subindo mais rapidamente que durante a década de 2000” [VI]. Mantida a taxa de aumento de 2,5 ppm/ano (desprezando, portanto, o fator aceleração), chegaremos em 450 ppm nos próximos 15 anos, isto é, no primeiro quinquênio dos anos 2030 e ultrapassaremos 500 ppm na década de 2050. A comunidade científica em peso adverte sobre as consequências graves, talvez gravíssimas, dessa trajetória. Como afirmava o IPCC já há mais de dez anos (2007, AR4): “Qualquer alvo de estabilização do CO2 acima de 450 ppm está associado a uma probabilidade significativa de disparar um evento climático de larga escala” [VII]. Em outras palavras, estamos colocando ano após ano mais balas no tambor de nossa roleta russa. Essa é a mais simples definição de um comportamento de suicídio ecológico.

Declínio da fertilidade masculina
Além das crescentes emissões de gases de efeito estufa, outras formas de poluição química do ambiente e dos organismos pelas corporações constituem por certo a terceira via pela qual se patenteia o comportamento ecologicamente suicida das corporações, consentido por nossas sociedades abúlicas. Nos EUA, por força de uma lei de 1976 (Toxic Substances Control Act, TSCA), a Agência de Proteção Ambiental (EPA) havia inventariado entre 1978 e 1982 aproximadamente 62 mil substâncias químicas industriais. Esse controle legal (TSCA) cobria os produtos gerados pela indústria química dos EUA (mas NÃO cobria aditivos colocados nos alimentos, medicamentos, cosméticos, munições, pesticidas e tabaco). Entre 1982 e 2012, a EPA recebeu o registro legal preliminar (“Premanufature Notification”) de outras 22 mil novas substâncias químicas (“new chemicals”). “Por isso, o Inventário da EPA contém agora cerca de 84 mil substâncias químicas com autorização para serem comercializadas” [VIII]. A indústria química é um dos setores industriais do capitalismo global mais danosos para os seres vivos. Seu poder de se manter acima de qualquer controle sanitário espelha-se nas cifras de uma estimativa do PNUMA: o volume global de vendas de substâncias químicas aumentou desde 1975 de US$ 171 bilhões para US$ 4,1 trilhões em 2013.
As megacorporações banham hoje as pessoas, as sociedades e, em geral, a biota planetária numa sopa química industrial de muitas dezenas de milhares de substâncias cujos efeitos diretos são desconhecidos, sem falar na combinatória das interações entre elas. Isso posto, a poluição química é a hipótese de etiologia sempre mais recorrente e mais plausível, e mesmo mais provável, de várias patologias, disfunções e distúrbios neurocomportamentais que vêm acometendo nossas sociedades. Uma dessas disfunções, que começa agora a ser mais estudada, é o declínio da fertilidade masculina.
Desde os anos 1990 surgiram os primeiros alertas consistentes, mostrando que a quantidade e a qualidade dos espermatozoides haviam começado a declinar. Embora não se tenha ainda certeza sobre as causas desses declínios, que devem ser múltiplas, os trabalhos apontam convergentemente para os perturbadores endócrinos, substâncias que interferem no funcionamento normal dos hormônios humanos. Joëlle Le Moal, epidemiologista do Institut national de Veille sanitaire (InVs), na França, afirma, por exemplo, a respeito do declínio da fertilidade masculina, que “a hipótese de perturbações endócrinas é forte, dados os produtos químicos globalmente difusos no meio ambiente aos quais a população é exposta por todas as vias possíveis, seja pela alimentação, seja pelo ar” [IX].
Mais recentemente, uma meta-análise com dados de 42.935 homens, assinada por oito cientistas coordenados por Hagai Levine, confirmou a consistência de trabalhos anteriores, estabeleceu novos e mais confiáveis resultados e fortaleceu ainda mais a hipótese ambiental [X]:
“[o declínio na] contagem de espermatozoides foi plausivelmente associado a múltiplas influências ambientais e de estilo de vida, tanto na fase pré-natal quanto na vida adulta. Em particular, perturbações endócrinas causadas por exposições a substâncias químicas ou o tabagismo maternal durante janelas críticas de desenvolvimento reprodutivo masculino podem desempenhar um papel na vida pré-natal, enquanto mudanças de estilo de vida e exposição a pesticidas podem ter importância na vida adulta”.
A revisão sistemática de Hagai Levine e colegas
O objetivo dessa revisão é avaliar os trabalhos que reportam dados sobre a contagem total (total sperm count, TSC) e a concentração por mililitro (sperm concentration, SC) dos espermatozoides no sêmen, segundo dois grupos geográficos: os países industrializados ou “Western countries” [XI] e “outros”, i.e., países da América do Sul, África e Ásia). Essa revisão não foca na qualidade morfológica e na motilidade dos espermatozoides, outros fatores intervenientes na fertilidade masculina. Fatores susceptíveis de criar algum viés estatístico (potential confounders) foram devidamente controlados e ajustados. Os resultados obtidos estampam-se na Figura abaixo.

Reprodução
Figura 2 – (a) Concentração média de espermatozoides por mililitro (milhão/ml) e (b) contagem total de espermatozoides no sêmen em milhões, entre 1973 e 2011.| Fonte: Hagai Levine et al., « Temporal trends in sperm count: a systematic review and meta-regression analysis”. Human Reproduction Update, 2017, pp. 1-14, figura 3.

O gráfico da esquerda (a) mostra a redução da concentração média de espermatozoides por mililitro (milhão/ml). Observam-se aqui declínios entre homens dos países industrializados (Western), seja no grupo de homens não selecionados por problemas de fertilidade, ou outros vieses [XII] (Unselected Western, linha preta), seja entre homens férteis sempre dos países industrializados (Fertile Western, linha verde), com um declínio mais íngreme entre os homens do primeiro grupo (Unselected Western). Usando estimativas de 99 milhões de espermatozoides por ml em 1973, chega-se a 47,1 milhões/ml em 2011, um declínio de 52,4%, a uma taxa de declínio de 1,4% ao ano no primeiro grupo (Unselected Western, linha preta).
O gráfico da direita (b) mostra a redução da contagem total de espermatozoides no esperma. Observam-se aqui declínios ainda mais íngremes entre homens dos países industrializados não selecionados por problemas de fertilidade ou outros vieses (Unselected Western, linha preta): de estimativas de 337,5 milhões em 1973, passa-se a 137,5 milhões em 2011, um declínio de 59,3% a uma taxa de declínio de 1,6% ao ano.
De outro lado, não foram constatadas tendências significativas na contagem total (total sperm count, TSC) e na concentração por mililitro (sperm concentration, SC) dos espermatozoides no sêmen, nos dados coletados nos países da América do Sul, Ásia e África. Pode-se explicar tal discrepância por duas razões. A primeira, discutida pelos autores, é um conhecimento mais lacunar e menos temporalmente abrangente dos dados, haja vista o número muito menor e mais recente de estudos sobre infertilidade masculina feitos nesses paísesb [XIII].
A segunda razão, não aventada nesse trabalho, parece-me desempenhar um papel ao menos tão importante quanto a primeira: a menor exposição das populações desses países “subdesenvolvidos” a esses compostos químicos, cujos impactos sobre a fertilidade ocorrem por vezes já em período pré-natal e só são constatáveis muitos anos depois. De fato, nos anos 1970 – 1990, as sociedades dos países do Sul eram ainda menos urbanizadas, sua agricultura era menos intensamente sujeita a fertilizantes industriais e a agrotóxicos e, sobretudo, era muito menor seu contato cotidiano com substâncias químicas usadas em grande escala nos produtos de uso corrente nos países industrializados: polímeros, pesticidas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs), bisfenol-A, ftalatos, retardantes de chamas brominados, compostos perfluorados e outros perturbadores endócrinos fortemente suspeitos de serem ingredientes importantes nas causas da infertilidade masculina prevalente nesses países. Se essa segunda razão for correta, a rápida urbanização desses países nos últimos 25 anos e sua exposição mais recente em escala como produtores e/ou consumidores desses produtos intoxicantes deverá se refletir em declínios futuros de suas taxas de fertilidade.
É claro que o declínio da fertilidade masculina constatado nos países industrializados não condena (ainda) esses países a cenários terminais, tal como o imaginado pelo romance The Children of Men de P. D. James (1992) e o filme homônimo de Alfonso Cuarón (2006), que retratam em 2027 uma sociedade imersa no caos gerado, entre outros fatores, por um colapso absoluto da fertilidade humana. Se tomarmos por referência os limiares de fertilidade definidos por D. S. Guzick e colegas num estudo de 2001, esses países estão ainda muito distantes de um estado coletivo de infertilidade ou de subfertilidade, como mostra a tabela abaixo.

Reprodução
Zonas e limiares de fertilidade, indeterminação e subfertilidade relativos a três variáveis: concentração de espermatozoides (milhão/ml), motilidade (%) e morfologia (% de normalidade)

Fonte: D. S. Guzick, J. W. Overstreet, P. Factor-Litvak, C.K. Brazil, S.T. Nakajima, C. Coutifaris et al., “Sperm morphology, motility, and concentration in fertile and infertile men”. New England Journal of Medicine, 2001, pp. 1388-1393, reproposto em Amir S. Patela, Joon Yau Leong, Ranjith Ramasamya, “Prediction of male infertility by the World Health Organization laboratory manual for assessment of semen analysis: A systematic review”, Arab Journal of Urology, 16, 1/III/2018, Tabela 3.
Lembre-se que, como visto no gráfico acima (Figura 2), as concentrações de espermatozoides nos dados coletados em homens não selecionados dos países industrializados (Unselected Western) haviam caído mais da metade (52,4%) em pouco menos de 40 anos (de 99 milhões de espermatozoides por ml em 1973 para 47,1 milhões/ml em 2011), a uma taxa de declínio de 1,4% ao ano neste grupo. Portanto, em 2018, mantida essa taxa, esse número já deve estar por volta 42,6 milhões/ml. Mantida essa taxa, nos próximos 40 anos, ele deve cair novamente pela metade, isto é, para 24 milhões/ml, colocando esses países já bem próximos da zona de subfertilidade masculina, de modo que, mantida essa rota, a infertilidade masculina, ao menos nos países industrializados, poderá deixar no horizonte do próximo meio século de ser ficção científica.
O problema do declínio da fertilidade hoje
O problema, entretanto, não reside no futuro, mas já no presente. Segundo Hagai Levine e colegas, na revisão acima citada (p. 9), “uma alta proporção de homens dos países industrializados com concentrações abaixo de 40 milhões/ml é particularmente preocupante dada a evidência de que a contagem de espermatozoides abaixo desse limiar é associada com uma menor probabilidade mensal de concepção”. Além disso, esse declínio implica problemas de saúde não atinentes à esfera da reprodução. “O declínio na contagem dos espermatozoides”, concluem os autores, “pode ser considerado como ‘o canário na mina de carvão’ para a saúde masculina no transcorrer de toda a vida”. Por exemplo, níveis reduzidos de espermatozoides no sêmen são preditores de diversas condições patológicas e são correlacionados com uma maior incidência de câncer nos testículos e com malformações genitais, como criptorquidias e hipospádias [XIV], além de atrasos da puberdade e em níveis totais mais baixos de testosterona, problemas cujas ocorrências também vêm aumentando percentualmente nos últimos decênios.
As megacorporações direta ou indiretamente ligadas à produção e ao consumo de combustíveis fósseis, o agronegócio global e a imersão da biosfera na grande sopa química em que os organismos vão se degradando fornecem os traços distintivos de nossa civilização tóxico-industrial. São esses traços – mas também e sobretudo nossa identificação com  a concepção capitalista das relações homem-natureza e nosso descaso pelas gerações futuras – as vias fundamentais pelas quais o comportamento da humanidade se aproxima sempre mais do suicídio ecológico.
O que nos difere, entretanto, do comportamento bacteriano é o fato de que os micro-organismos não estão conscientes da armadilha da expansão/poluição em que terminarão por cair. Nós, ao contrário, estamos cada vez mais conscientes da insustentabilidade crescente de nossas escolhas de sociedade. A ciência, a reflexão filosófica e política e a indignação moral em face da crescente desigualdade social nos fazem cada vez mais conscientes de que avançamos numa trajetória suicida de colapso socioambiental. Essa consciência é, de um lado, um agravante, porque continuamos a nos comportar como micro-organismos, mas é também um motivo de esperança, porque a percepção do perigo crescente nos obriga a uma mudança radical ao mesmo tempo em nossas relações sociais e em nossas relações com a natureza, uma mudança de paradigma civilizacional e sem paralelo histórico, a única capaz de nos afastar a tempo do suicídio ecológico.

[I] Cf. C. Ratzke, J. Denk, J. Gore, “Ecological suicide in microbes”Nature ecology & evolution, 16/IV/2018.
[II] Cf. Stephen Fleischfresser, “Self-destructive microbe species can commit ‘ecological suicide’. Cosmos, 17/IV/2018.
[III] Cf. Natalie Angier, “A population that pollutes itself into extinction (and it’s not us)”. The New York Times, 30/IV/2018; Fernando Reinach, O Estado de São Paulo, 5/V/2018.
[IV] Cf. Peter Kuznick & Oliver Stone, The Untold History of the United StatesSimon & Schuster, 2012; Peter Kuznick, “The Atomic Bomb didn’t end the war”, U.S. News, 27/V/2016.
[V] Cf. Michael Williams, Deforesting the Earth, 2000, Epilogue: “Almost as much forest was cleared in the past as has been cleared in the last 50 years”.
[VI] Citado por Chris Mooney, “Earth’s atmosphere just crossed another troubling climate change threshold”. The Washington Post, 3/V/2018: “The rate has been increasing, with the decade of the 2010s rising faster than the 2000s. (…)“We’re just moving further and further into dangerous territory.”
[VII] IPCC Fourth Assessment Report (2007), Working Group II: Impacts, Adaptation and Vulnerability: “Any CO2 stabilisation target above 450 ppm is associated with a significant probability of triggering a large-scale climatic event”. 
[VIII] Cf. “Identifying and Reducing Environmental Health Risks of Chemicals in Our Society: Workshop Summary”. (Roundtable on Environmental Health Services, Research and Medicine: Board on Population Health and Public Health Practice. Institute of Medicine. Washington (DC) National Academic Press, 2/X/2014.
[IX] Cf. Paul Benkimoun, “Chute spectaculaire de la qualité du sperme”. Le Monde, 6/XII/2012; “Alerte sur le sperme”. Le Monde, 6/XII/2012
[X] Cf. Hagai Levine et al., « Temporal trends in sperm count: a systematic review and meta-regression analysis”. Human Reproduction Update, 2017, pp. 1-14.
[XI] Western abrange neste estudo os EUA, Europa, Austrália e Nova Zelândia.
[XII] Homens que a princípio não conheciam sua condição de fertilidade.
[XIII] Levine et al. (cit. p. 8): “As in prior analyses, we saw no significant declines for studies from South America, Asia and Africa, which may, in part be accounted for by limited statistical power and an absence of studies in unselected men from these countries prior to 1985”.
[XIV] A criptorquidia ou criptorquia ocorre quando um ou ambos os testículos não descem para a bolsa escrotal na fase final da gestação. A hipospádia é um defeito congênito caracterizado pela disposição do meato uretral na face inferior do pênis e não na extremidade da glande.
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2aedição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização(crisalida.eco.br).

Por que evitar beber água engarrafada? artigo de Flávio José Rocha

As exigências do mundo urbano fizeram com que o tratamento da água passasse a ser uma política pública de saúde. Governos foram obrigados a melhorar e expandir os serviços de saneamento no início do século XX porque a qualidade da água consumida pelas populações de algumas cidades estavam aquém do aceitável de acordo com as autoridades sanitárias da época. Grande parte deste processo deve-se ao avanço da Ciência que resultou na conclusão de que existia uma relação entre algumas doenças e o consumo de águas contaminadas. O tratamento da água buscava garantir a diminuição destas doenças transmitidas por bactérias para as populações consumidoras.

Mesmo com o avanço no tratamento da água, todos nós sabemos que nem sempre (mais frequente do que desejamos) a nossa água é bem tratada.2 Resta a muitas pessoas pagar por uma água que acreditam ser pura, a exemplo da água mineral engarrafada. A crença na pureza da água engarrafada alimenta a venda deste “produto” por empresas brasileiras e, nos últimos anos por multinacionais, gerando muito lucro com este comércio, embora o aumento exponencial do seu consumo contribua para o avanço da exploração desenfreada das suas fontes.

O hábito de beber água engarrafada popularizou-se muito recentemente em parte pelo medo de que a água que abastece as nossas casas esteja contaminada pela falta de um tratamento adequado e seja impura. Por estarem armazenadas no subsolo, há uma crença de que as águas minerais estão protegidas. Mas seria isso verdade com relação aos agrotóxicos que penetram nos lençóis freáticos, por exemplo?3 Entretanto, como bem mostra o vídeo A História da Água Engarrafada,4 os consumidores podem, em alguns casos, estar consumindo uma água não tão pura como imaginam. Em outros casos, a água engarrafada não é mineral e sim água adicionada de sais.5 Temos ainda as águas gaseificadas artificialmente, resultado de um processo industrial, diferente da água com gás natural.

Os brasileiros estão entre os dez maiores consumidores deste “produto” em mundo que engarrafa mais de 300 bilhões de litros de água por ano. É um negócio que movimenta muito dinheiro e é bastante lucrativo. Como não ser lucrativo um “produto” que já vem pronto para o consumo e basta ser embalado e transportado para o local da venda?

Mas não é em todo o mundo que o consumo de água engarrafada vem aumentando. Nos países nórdicos o consumo de água mineral caiu em parte porque foi constado que a qualidade da água da torneira é superior à engarrafada e estudos mostraram o desperdício de recursos naturais, entre outros, com o seu transporte da fonte até chegar aos consumidores (Pietila et al, 2013). Além disso, o descarte das garrafas plásticas utilizadas para o seu engarrafamento é uma verdadeira praga para os rios e os oceanos,6 sem contar que muitas das garrafas descartadas nos países do norte do globo vão parar nos lixões de países de outros continentes (Barlow, 2009). A cidade de Londres planeja instalar fontes de água pela cidade para evitar o consumo de água engarrafada e o descarte de plástico no meio ambiente. Apenas a questão dos plásticos que poluem o planeta já valeria como um bom motivo para consumir água engarrafada apenas quando não houvesse uma outra opção. Além dos motivos já elencados acima, muitas vezes um litro de água mineral custa mais do que um litro de gasolina. Motivações como essa fizeram surgir no Canadá o movimento Ban the Bottle para desencorajar o consumo de água engarrafa e no Brasil há um sítio eletrônico chamado Água na Jarra que incentiva o consumo de água tratada não engarrafada em eventos e restaurantes.7

Mercado que movimenta milhões no mundo, a água engarrafada entrou no rol de produtos muito rentáveis para grandes empresas. No caso brasileiro, este mercado é dominado ainda por muitas empresas locais, mas a tendência é que as grandes empresas comecem a abocanhá-lo. Mas por que o interesse das multinacionais pelas nossas águas minerais? Com o avanço do conhecimento científico sobre os malefícios dos refrigerantes e outras bebidas industrializadas, muitas pessoas voltaram-se para o consumo dos chás ou das águas minerais como uma opção mais saudável e isso afetou o faturamento das indústrias dos ramos de refrigerantes. O novo foco é a venda de água mineral e chás, já que a venda de seus produtos açucarados como os refrigerantes estão em queda em todo mundo dado a epidemia de obesidade.8 O passo mais lógico do ponto de vista mercadológico para as empresas do ramo das bebidas foi adentrar em um mercado em ascensão e é exatamente isso que elas estão fazendo.

A chegada das grandes empresas na exploração das fontes de água mineral também traz o medo do descompromisso com o meio ambiente. O caso mais famoso até agora no Brasil foi o das fontes das águas minerais de São Lourenço, em Minas Gerais, concedidas para exploração à Nestlé nos anos noventa. O conflito entre moradores daquele município mineiro e a multinacional suíça revelou que algo novo estava acontecendo no mercado das águas minerais nacionais. A Nestlé é acusada por moradores daquele município de causar dano ambiental porque algumas fontes secaram com a exploração exaustiva feita pela empresa, segundo alguns moradores da cidade.9

Mas não é apenas em São Lourenço que há conflitos envolvendo a exploração de água mineral em Minas Gerais. Organização sociais reclamam que o Governador do Estado, Fernando Pimentel, está tentando privatizar a CODEMIG – Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais – e as populações de algumas cidades do sul de Minas denunciam que pode acontecer com as fontes de águas minerais daqueles municípios o mesmo que aconteceu em São Lourenço, já que a proposta do governador petista é repassar 49% das ações da CODEMIG para investidores privados e isso pode influenciar as decisões sobre concessões para a inciativa privada explorar as fontes de águas minerais daquelas localidades, fato já consumado em Caxambu e Cambuquira recentemente quando estas tiveram algumas de suas fontes concedidas por 15 anos (podendo ser renovadas por mais 15 anos) para empresas privadas. Araxá, Lambari e Contendas também estão na fila da CODEMIG para o mesmo processo. Vale destacar aqui o valor terapêutico dessas águas. Estas cidades são visitadas durante todo o ano por turistas que querem beber ou aproveitar os banhos receitados como terapias para a cura de várias doenças10.

O medo de muitos que se opõem a exploração das nossas águas minerais por grandes empresas é que se repita o que já aconteceu com tantas outras das nossas riquezas naturais como o Pau-Brasil e o ouro, para citar dois exemplos. Como de praxe, empresas vem, lucram, exploram a exaustão e vão embora. É um ciclo vicioso que não para e move a roda da fortuna parando sempre no mesmo lugar, e este nunca é o dos mais pobres. Algumas coisas que podemos fazer para começar a mudar esta situação é começar a denunciar a exploração desenfreadas das nossas águas minerais. Porém, o mais importante e urgente é parar de consumir água engarrafada, fazendo com que ela seja comprada apenas quando estritamente necessária. Muitas pessoas têm as suas garrafas permanentes que carregam com água filtrada quando estão na rua, no trabalho ou em eventos. Agindo assim estaremos protegendo as nossas águas e deixando uma herança que não tem preço para as gerações futuras.

Referências Bibliográficas

BARLOW, Maude. El convenio azul: la crisis del agua y la batalla futura por el direcho al agua. Santiago: Chile Sustentable. 2009.

Pietila et al, Serviços descenbtralizados: a experiência nórdica. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 294-312.

1 Doutor em Ciências Sociais – PUC-SP.

2 A cidade de Nova Iorque fornece água aos seus habitantes que não passa por tratamento químico. O investimento financeiro é feito na proteção da água das nascentes e dos rios que abastece aquela cidade e não na compra de produtos para tratá-la. Veja interessante reportagem do Globo Rural em https://www.youtube.com/watch?v=paxGLzKjCyA.

3 Leia artigo A química por trás da água de torneira e da água mineral no link https://carollinasalle.jusbrasil.com.br/noticias/114536054/a-quimica-por-tras-da-agua-de-torneira-e-da-agua-mineral

4 O vídeo pode ser visto no Youtube no link https://www.youtube.com/watch?v=KeKWbkL1hF4.

5 Confira algumas diferenças entre a água mineral e a água adicionada de sais no link http://www.abinam.com.br/sites/arquivos/downloads/folhetoaguamineralxadicionadapaisagem.pdf.

6 Em 2009 a cidade de Concord, nos Estados Unidos, proibiu a venda de água mineral em garrafas com menos de 1 litro como uma forma de desestimular o consumo de água mineral, movimento iniciado em uma cidade da Austrália. Outras cidades e universidades estão seguindo o mesmo exemplo em vários outros países. Leia reportagem sobre Concord em https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cidade-proibe-venda-de-agua-em-garrafas-com-menos-de-um-litro-7193409.

7 Confira o blog do Ban the Bottle em https://www.banthebottle.net/ e o sítio eletrônico do Água na Garrafa em http://www.aguanajarra.com.br/.

8 O ótimo documentário Criança, a alma do negócio mostra quanto de açúcar é consumido nos refrigerantes. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=ur9lIf4RaZ4

9 Leia matéria do portal Pública de 2014 sobre o conflito envolvendo a Nestlé e moradores de São Lourenço em https://apublica.org/2014/04/em-guerra-contra-a-nestle/.

10 Crenoterapia é o ramo da medicina que estuda o poder curativo das águas minerais.

Nota técnica do MPT pede rejeição a projeto que fragiliza lei dos agrotóxicos

O Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgou nesta terça-feira (15) nota técnica, assinada pelo procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, manifestando-se pela rejeição do PL 6.299/2002, que altera a Lei dos Agrotóxicos (7.802/89). O parecer da proposta, assinado pelo deputado Luiz Nishimori (PR/PR), está previsto para ser votado nesta terça-feira (15) na Comissão Especial sobre Defensivos Agrícolas da Câmara dos Deputados. O projeto é do ministro da Agricultura, Blairo Maggi (PP/MT).

Se aprovado o projeto, o termo “agrotóxico” será substituído pela expressão “produto fitossanitário”. Além disso, o PL prevê, dentre outros pontos, que os agrotóxicos possam ser liberados pelo Ministério da Agricultura mesmo se órgãos reguladores, como Ibama e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não tiverem concluído suas análises.

A nota informa que a proposta afronta tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil, em especial as Convenções nº 155 e nº 170 da OIT, que dispõem, respectivamente, sobre a prevenção dois riscos, acidentes e danos à saúde que sejam consequência do trabalho e riscos ocasionados pela exposição a pesticidas. Também afronta orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Além disso, o projeto está na contramão de decisões recentes do Superior Tribunal Federal (STF), que reconhecem a similaridade da discussão jurídica sobre as medidas protetivas (princípios da prevenção e da precaução) necessárias em face dos agrotóxicos e aquela travada por ocasião da análise das restrições à utilização do amianto. “A Corte Suprema vem reconhecendo a garantia constitucional do afastamento de perigo à saúde e de risco ao meio ambiente, configurando medida de prevenção para segurança das gerações futuras, com efetiva proteção e respeito à saúde e à integridade física”, destaca a nota técnica.

De acordo com o MPT, os agrotóxicos têm ampla disseminação em áreas rurais e urbanas e suas consequências atingem grupos populacionais de forma imprevisível e inevitável, seja através da aplicação direta nesses locais ou da contaminação de água, chuva e alimentos que chegam a locais muito distantes. Os grupos populacionais mais atingidos são os trabalhadores e trabalhadoras envolvidos na cadeia produtiva, tanto dos produtos destinados à alimentação quanto dos destinados ao controle de vetores urbanos.

“O volume aplicado na agricultura brasileira chega perto de 900 mil toneladas anuais (2015), dado que indica o elevado grau de exposição da população brasileira, sob diversas formas. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde aponta que entre 2008 e 2017 foram registrados cerca de 16 mil casos associados à exposição de trabalhadores5. Observa-se que essas notificações, na sua quase totalidade, estão associadas a intoxicações agudas, não contabilizando as doenças crônicas, cientificamente associadas ao uso dos biocidas, e que têm maior impacto social e para a vida pessoal e familiar das vítimas, além dos altos custos para a saúde pública”, diz a nota.

Para o MPT, esse cenário, por si só, já aponta uma situação ainda mais preocupante, considerando que a maior parte dos casos se encontra subnotificada. A subnotificação pode ser explicada por diversas razões, tais como: a dificuldade de diagnóstico das intoxicações, em especial as crônicas que possuem períodos de latência que podem chagar a décadas; o uso frequente de agrotóxicos distintos, ou combinados, que podem desencadear efeitos bastante diversos aos previstos no momento do registro e na bula; e a falta de informação sobre a toxicidade do produto, tanto nos serviços de saúde como para os trabalhadores e trabalhadoras, mesmo com a sinalização existente no rótulo (símbolo da caveira).

Na nota, o MPT contesta a afirmação de que a Lei 7.802 de 1989 seria “obsoleta”, conforme apontou o parecer do deputado. Conclui afirmando que estudos indicam o contrário, “A legislação brasileira atual mostra-se alinhada, em muitos dispositivos, a legislações internacionais em relação a aspectos fundamentais à proteção da saúde humana e que a sua eventual atualização deveria se dar no sentido aproximá-la das legislações internacionais modernas no que concerne à definição de restrições à utilização de produtos mais tóxicos, que já não são autorizados em outros países. A desconsideração dessa premissa expõe a população brasileira aos riscos da contaminação e também pode levar a sanções comerciais e a restrições de venda dos nossos produtos agrícolas no mercado internacional, por conta da presença de resíduos de agrotóxicos”.


Da série: Vai vendo - Estudo mostra que desmatamento esquenta riachos e encolhe peixes na Amazônia

O desmatamento está fazendo peixes encolherem em uma região da Amazônia. A conclusão é de um estudo recém-publicado, que mostrou como o aquecimento dos riachos provocado pela derrubada da mata e pela construção de barragens afetou a qualidade de habitat para os peixes, impactando na diminuição média de 36% do tamanho de algumas espécies.
De acordo com um dos autores do trabalho, o ecólogo Paulo Ilha, pesquisador associado do IPAM, a retirada da cobertura vegetal, seja para pastagem ou plantação de soja, facilita a erosão e o transporte de sedimentos para dentro dos rios, modifica características físico-químicas da água, a disponibilidade de alimento e abrigo para os animais aquáticos. A construção de barragens também contribui com essa alteração da paisagem para o aquecimento da água, que influencia diretamente a biodiversidade do local.
“Embora se saiba há muito tempo que em ambientes mais quentes o tamanho dos organismos costuma ser relativamente menor, e que o aquecimento ambiental pode provocar reduções, nenhum estudo havia testado a hipótese de que o aumento da temperatura da água em riachos provocado pela conversão de florestas em áreas agrícolas poderia reduzir o tamanho dos peixes.”
A pesquisa de campo foi realizada na Fazenda Tanguro, no Nordeste de Mato Grosso, local em que o Projeto Tanguro, liderado pelo IPAM, desenvolve desde 2004 pesquisas sobre a interação entre mudanças climáticas, floresta e agricultura. Os pesquisadores analisaram o tamanho dos peixes em pontos com diferentes usos da terra, foram em seis riachos, sendo três em áreas de florestas e três em áreas agrícolas.
O estudo envolveu 36 espécies presentes nas bacias dos rios Darro e Tanguro. As análises indicam que quatro das seis espécies mais presentes nos riachos diminuíram de tamanho corporal, entre 43% e 55%, nas áreas agrícolas.
Para confirmar a hipótese, o pesquisador realizou um experimento no laboratório da Universidade de São Paulo (USP), onde foram criados peixes de uma espécie nativa (Melanorivulus zygonectes) em temperaturas semelhantes às dos riachos agrícolas e de floresta.
“Os peixes criados em temperatura semelhante às dos riachos agrícolas perderam massa, diminuindo de tamanho, enquanto os peixes criados em temperatura semelhante às dos riachos de florestas cresceram”, afirma Ilha. A pesquisa não investigou os mecanismos fisiológicos que levam à diminuição do tamanho dos peixes, mas constatou que a temperatura da água é um fator preponderante.
Estudos anteriores constataram que córregos com áreas desmatadas são de 3oC a 4°C mais quentes do que em áreas florestadas. A temperatura é um dos fatores mais importantes para a distribuição dos organismos, as interações e as funções ecológicas das comunidades.
“As conclusões do estudo podem ter implicações para a conservação de peixes em resposta ao aquecimento provocado por mudanças climáticas e no uso da terra”, diz Ilha. “Alterações no tamanho do corpo podem afetar praticamente todos os aspectos da biologia de um organismo, de sua fisiologia à história de vida, interações ecológicas, e funções ecossistêmicas, incluindo provisão de alimento e renda para seres humanos.”
Este estudo fez parte da tese de doutorado de Ilha, feita na USP sob orientação do ecólogo Luis Schiesari, e contou com a colaboração de Fernando Yanagawa, do professor Carlos A. Navas, e da pesquisadora KathiJo Jankowski.
 O Projeto Tanguro é um esforço científico com o objetivo de conciliar a produção de alimentos e a integridade ambiental com as mudanças climáticas globais e locais. Ele é composto por um grupo interdisciplinar de pesquisadores, sob a coordenação do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e com a colaboração da AMAGGI, cuja Fazenda Tanguro, localizada em Querência (MT), serve como centro de experiências do projeto.
Do IPAM, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/2018