Entre 2019 e 2022, cerca de dois mil novos agrotóxicos foram aprovados para comercialização no Brasil, atualizado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Em entrevista para a Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a toxicologista e assessora técnica da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), Karen Friedrich, detalha os pontos mais nocivos do chamado Pacote do Veneno, já aprovado na Câmara dos Deputados no começo de 2022.
Agora, cabe ao presidente do Senado decidir se coloca o tema em votação no plenário. Entre as mudanças graves, Friedrich elenca a centralização, no Mapa, da liberação dos agrotóxicos e coloca a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em caráter consultivo, além da aprovação automática do produto caso a análise ultrapasse o período de dois anos.
Ela também explica os motivos do Brasil concentrar tantos agrotóxicos já proibidos na Europa, as defasagens dos testes toxicológicos feitos pelos fabricantes e a necessidade de notificação das suspeitas de intoxicação por parte dos profissionais de saúde.
Você poderia fazer um balanço da tramitação no Congresso?
O PL 6.299, de 2002, é um PL [Projeto de Lei] do Senado, do então senador Blairo Maggi, e que tinha poucos artigos, acho que dois artigos, uma coisa muito simples; e aí ele foi aprovado no Senado e foi para a Câmara [dos Deputados], e na Câmara ficou parado.
Em 2016 começaram alguns movimentos, e a esse PL foram apensados outros que apresentavam vários desmontes. Tudo que estava relacionado a agrotóxico foi apensado a esse PL, mas, na verdade, aquilo que seriam propostas positivas foram retiradas e foram apensados vários outros, todos com situações muito críticas. A gente sabe que tem projetos de lei muito importantes, muito interessantes, e que estão parados, não quer dizer que eles estão sendo discutidos.
Isso é importante mencionar porque o agronegócio e aqueles setores que vêm defendendo a aprovação do PL têm utilizado dessa narrativa para dizer que já está tudo bem acordado com a sociedade. Isso não é verdade. Então esse é um ponto. Em fevereiro deste ano a Câmara dos Deputados aprovou o PL, uma coisa super-rápida, vários destaques foram apresentados por deputados que tentavam diminuir os danos do PL, mas não foram aprovados. Em junho, o agora PL 1.459/2022 chegou ao Senado. E ao chegar no Senado, a tramitação só ocorreu na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Apesar de ser uma matéria que tem uma interface com a saúde e com o meio ambiente muito grande, só está sendo discutida na agricultura e a gente não sabe se mais para frente vai passar por outras comissões. Bom, aí o texto que chega no Senado é um texto muito diferente do PL original que foi aprovado anteriormente nessa casa. Agora o Senado não pode fazer mudanças de redação, mudanças de mérito no Projeto de Lei, ele apenas pode suprimir textos, artigos ou reprovar totalmente o PL.
Nesses últimos meses, principalmente se a gente considerar que foram meses [de 2022] de um governo que apresentou vários desmontes, especialmente na questão ambiental, meses em que a gente teve uma eleição muito difícil, então uma discussão mais aprofundada desse Projeto de Lei no Senado ficou prejudicada. Hoje o PL tem um relatório do presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, que é o Acir Gurgacz (PDT/PR). O parecer dele é favorável à aprovação e esse parecer precisa ser votado nessa comissão e depois o presidente do Senado deve deliberar se ele vai acatar solicitações para a tramitação em outras comissões ou se vai mandar para o plenário.
Atualização: o projeto foi aprovado na CRA em 20 de dezembro. No entanto, não foi a plenário, o que Karen Friedrich considera uma vitória dos movimentos sociais e da bancada progressista. Mas a preocupação continua em 2023.
Entrando nos detalhes do pacote, quais mudanças provocam mais impactos?
São vários pontos. São mais de 60 artigos e vou citar algumas coisas que eu acho mais graves. O primeiro é a retirada de poder decisório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e concentrando no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Hoje quem concede o registro é o Mapa, só que isso passa pela anuência da Anvisa e Ibama. Então, se esses órgãos falarem: esse agrotóxico não pode ser registrado, porque os problemas de saúde ou de meio ambiente são graves, são incompatíveis com o benefício, entre aspas, do agrotóxico, ele não é registrado. A gente sabe que esses órgãos também sofrem muita pressão do Mapa. Antigamente existia, e essas comissões, quase todas, foram descontinuadas no governo de [Jair] Bolsonaro, o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável], o próprio Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], ainda continua, mas sem a participação da sociedade civil de forma mais expressiva.
Antigamente existia a comissão técnica de assessoramento, que era uma comissão formada pelo Mapa, Ibama e Anvisa, e que aí se decidia em conjunto, justamente para avaliar e dar a palavra final, tanto sobre o registro como a revisão de registro de produtos em uso. Então se a gente olhar as atas que estão disponíveis no site da Anvisa, a gente vê ali as palavras, os discursos do Mapa sempre tentando manter produtos no mercado.
Então o PL prevê uma concentração de poder nas mãos do Ministério da Agricultura. Isso não está em um único artigo do projeto de lei, se a gente olhar os principais artigos onde isso está apresentado, do artigo 3º ao 7º, que delibera as funções da Agricultura, da Anvisa e do Ibama, e no artigo 28º também. Esse ponto está espalhado pelo texto do projeto de lei usando palavras como: o Mapa poderá solicitar informações, poderá consultar, quando couber, os órgãos da Anvisa e do Ibama podem se manifestar, então tem palavras que juridicamente, obviamente, colocam ali de forma muito clara que não existe obrigatoriedade de o Mapa consultar e solicitar informações.
Outro ponto crítico: quando ocorre monitoramento de agrotóxicos em alimentos, caberá exclusivamente ao Mapa divulgar essas informações, o que também é grave, porque, obviamente não é um órgão que tem competência para dizer se aquele resultado tem impacto sobre a saúde, por exemplo. Essas concentrações ficam nas mãos do Mapa, que é o setor, vamos dizer assim, legitimamente preocupado com a questão econômica. Mas a economia não pode, de maneira nenhuma, se sobrepor às questões de saúde e meio ambiente.
Como o PL determina os prazos para registro de produtos?
Para registrar um produto novo, o prazo na legislação atual é de cerca de três meses apenas, de acordo com a legislação da década de 1980. Mas esse prazo, obviamente, nunca foi seguido. Então ficou uma coisa meio tácita. O projeto de lei determina prazos máximos para avaliação do dossiê de registro e coloca um prazo máximo de dois anos para um produto novo. Se forem produtos que já têm um princípio ativo, o prazo é muito menor, ainda que precise novamente dessa avaliação.
A revisão de registro, ou reavaliação de registro, não tem periodicidade mínima para ocorrer. Como na legislação antiga, a legislação nova diz que o registro pode ser revisado se houver alertas internacionais e tal. Essas convenções, como a de Estocolmo, podem indicar um alerta de um dano grave, e aí o Brasil é obrigado a revisar o registro. O projeto coloca um prazo máximo para revisão de registros, e já levou mais de dez anos, até porque as empresas entram com liminar para parar o processo, depois volta e para de novo. Colocou um prazo máximo, ok, seria bom. Porém, se ele vai ser coordenado pelo Mapa e realizado somente pelo Mapa, que poderá ou não solicitar informação dos demais órgãos, é claro que esse prazo pode ser cumprido porque realmente o que a gente espera é que essa avaliação não seja uma avaliação aprofundada dos efeitos dessas substâncias.
Então, se esse processo de registro de um produto novo, que são dois anos, ele não for cumprido, o produto será automaticamente registrado, com registro temporário. E ele poderá ser utilizado mesmo que não se saiba se os problemas de saúde ou meio ambiente são incompatíveis com a utilização no Brasil. Isso é um absurdo. E o que a gente vê? Eles [os fabricantes] alegam que os processos levam oito anos. Isso também não é verdade. A nota técnica da Anvisa, quando ela publicou em 2018 se manifestando contra o PL do Veneno, justificou que eles pegaram os piores exemplos. Só que isso também já vem sendo há mais de 15 anos questionado. Os órgãos de saúde e meio ambiente, a própria agricultura, não tem servidores públicos suficientes para realizarem todas essas funções. O que seria a solução? Realizar concurso público, estruturar esses órgãos, eles até propõem no projeto de lei um sistema informatizado, não precisa aprovar um projeto de lei pra criar um sistema informatizado, de digitalizar documentos e tal. Então isso tudo são subterfúgios que eles usaram para fingir que o PL é bom. As mudanças que a gente vê como positivas, a criação de um sistema de cadastro, elas podem muito bem ser criadas sem precisar ser por lei. A questão não é lei, a questão é falta de vontade desses órgãos de atuarem, de criarem esse sistema. Isso é um problema sério, dizer que realmente demora, ok, mas demora porque os órgãos estão realmente sucateados. Você imagina se uma servidora entrar de licença maternidade ou um servidor de licença médica, o processo é interrompido. Então realmente isso é complicado.
Em várias entrevistas, você comenta que a maioria dos agrotóxicos que existem no brasil são proibidos na Europa, mais de 80%. Se existe uma legislação, por que não se consegue proibir aqui?
A Anvisa foi criada em 1999, antes isso era função do Ministério da Saúde, mas o que deveria ter sido feito era uma força tarefa de revisar a toxicidade desses agrotóxicos já permitidos antes da lei. A Anvisa fez alguns, mas não chega a 20 o número de agrotóxicos que ela revisou nesse tempo todo. Lá na China, só em 2014, foram 50.
A Lei dos Agrotóxicos (Lei 7802, de 1989) determina que se um agrotóxico estiver associado a câncer, mutação no material genético, toxicidade para o sistema reprodutivo, alterações hormonais e causar más formações fetais, ele deve ser proibido. Essa lei foi regulamentada no Decreto 4.074 de 2002. Só para a gente pensar, de repente você está se perguntando: então não têm agrotóxicos cancerígenos no Brasil? Temos sim, porque o Decreto de 2002 estabelece que a proibição só poderia ocorrer para os produtos que fossem novos, o produto que já estava no mercado, ficou. Então a maioria, quando a gente olha lá a própria lista dos produtos mais comercializados no Brasil, a maioria está no país, está autorizado no Brasil antes de 2002. Então tudo que estava, inclusive o glifosato, por exemplo, que é um dos mais conhecidos, o paraquat, que é muito antigo, a atrazina, que é um agrotóxico super tóxico, proibido na Europa, a gente usa em grandes volumes, entraram no Brasil antes desse decreto.
E o que esse PL modifica? Ele permite que produtos novos sejam registrados, mesmo que associados a esses efeitos, desde que o órgão que faça esse registro, que a gente já sabe que vai ser principalmente o Mapa, determine que o risco daquela doença seja aceitável. O que é risco aceitável? É o que eles acharem que é aceitável, então é aceitável eu ganhar US$1 bilhão com soja, mas ter mil casos de câncer por ano? É um pouco essa lógica. Ou é aceitável que um trabalhador da agricultura tenha 200% a mais de chance de ter um câncer com aquela substância do que uma pessoa que não está exposta a ela? Isso é o risco aceitável, é algo que vai ser determinado ali na hora, sem critérios. Quem defende o projeto de lei falta com a verdade nesse sentido, porque eles falam: “vamos adicionar etapas técnicas na análise de agrotóxico”. Isso não é verdade. Como é que se avalia os problemas de saúde, o risco de um agrotóxico? É um processo de quatro etapas, sendo que a primeira etapa, onde se identifica o efeito que causa, segundo a lei atual, se identifica que o problema é câncer ou problema reprodutivo, hormonal, um desses efeitos que eu citei, esse agrotóxico é imediatamente proibido, ele não segue nas demais etapas de avaliação de risco. Então por que eles afirmam que adiciona etapas? Adiciona sim, porque em vez do agrotóxico cancerígeno ser proibido logo de primeira, ele pode passar pela segunda fase, pela terceira fase, pela quarta fase. Ou seja, ele tem mais chances de ser aprovado. Isso é realmente uma grande perda.
Então, deu para perceber que o registro vai ser flexibilizado, no sentido de permitir produtos mais tóxicos, permitir registro de produtos sem uma avaliação de órgãos competentes da saúde e do meio ambiente, permitindo registro de produtos cancerígenos. O que a gente espera é que os produtos mais tóxicos sejam registrados. Quando eles dizem: “vão ser produtos mais modernos”, isso é mentira. Os produtos mais modernos têm a toxicidade diminuída, no geral, e são os produtos que a Europa usa e que o Brasil não usa.
E por que são proibidos aqui esses mais modernos?
Porque não interessa às empresas registrarem aqui, porque elas podem manter aqueles venenos que elas não vendem em lugar nenhum do mundo, os produtos estão sendo vendidos aqui no Brasil.
Não ocorre nem o pedido do registro?
Não. Quando você olha a fila de registros liberados pelo último governo, são poucos produtos novos, poucas novas tecnologias. Porque é, como eu falei, uma questão de mercado: se essas grandes fabricantes têm plantas que ainda produzem acefato, atrazina, vamos continuar com essas plantas abertas para o Brasil, vamos continuar despejando esses produtos na lixeira tóxica que se tornou o Brasil para agrotóxicos.
Olhando para esse cenário, aquele produto que não for registrado no Brasil, mesmo tendo todas essas facilidades para registro de produtos mais perigosos para saúde e para o meio ambiente, ainda assim, produtos sem registro no Brasil poderão ser fabricados aqui para exportação. E o pior, o que o projeto de lei diz ali em seu artigo 17, que as fabricantes não precisam apresentar informações toxicológicas e ambientais.
Quer dizer, como é que você fabrica uma coisa que você não sabe o problema de saúde que pode causar para aquele trabalhador da indústria? Para as pessoas que moram no entorno das fábricas? Que tipo de filtro, que tipo de medidas de segurança ambiental deve ser instalada naquela fábrica para evitar que aquele produto chegue no rio, chegue no ar, chegue no solo? Não se sabe, porque não vai ser obrigatório que as empresas apresentem essas informações. Isso é gravíssimo.
E qual o mercado para esse tipo de produto?
Por exemplo, tem muitos países da África que utilizam produtos que outros países não utilizam mais, até para controle de doenças negligenciadas, que são os mesmos princípios do agrotóxico. Organoclorados, que o Brasil já proibiu há muitos anos, o DDT [sigla para o inseticida de baixo custo Dicloro-Difenil-Tricloroetano].
O DDT tem seu uso permitido no continente africano, apesar de banido em todas as outras regiões. Mas o que eles alegam? “Para controle de malária vamos aplicar DDT”, como se não tivesse alternativas. Então talvez um DDT, talvez uma substância para utilização nesses países periféricos, que tem recebido atenção do agronegócio para avançar com agricultura tóxica, com agricultura mais prejudicial para esses países.
O Brasil poderia fabricar substâncias proibidas aqui sem informações toxicológicas, sem informações ambientais, para exportar. O projeto de lei na sua íntegra é um desastre do ponto de vista da saúde e do meio ambiente. E da agricultura, porque a gente tem visto vários embargos de cargas de produtos brasileiros em outros países por conta do excesso de agrotóxicos. Então, com certeza, isso também vai ser um problema econômico para o agronegócio brasileiro.
Como se avalia a toxicidade de um produto?
Para um produto ser registrado, tem uma falha, uma coisa que todo o mundo adota. Por exemplo, como temos alguns sendo registrados para Covid. Então, o princípio ativo novo de um agrotóxico, ninguém sabe a toxicidade dele, e a empresa precisa apresentar uma série de estudos toxicológicos. Esses estudos são realizados de acordo com diretrizes da OCDE, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, porque a empresa faz uma vez o teste e ela registra no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, na Europa, usa o mesmo resultado, economiza, vamos dizer assim.
Claro, também não tem sentido repetir, tem toda uma questão até de ética animal importante aí também. Então a empresa apresenta essa lista de estudos. Agora, como cada órgão, nacional ou internacional, interpreta esses resultados, e se ele aceita determinados riscos para determinados danos, isso difere.
Por que foi proibido na Europa? Justamente por isso. Aí eles [os fabricantes de agrotóxicos] gostam de falar: porque lá não tem o besouro ‘x’, lá não se planta café, lá não se planta soja. Mas não é bem assim, não é só isso, tem uma questão importante de toxicidade que, em geral, a gente tem sempre como exemplo a Comunidade Europeia que é muito mais restritiva, apesar de ter uma lei parecida com as nossas.
Enfim, as agências europeias acabam sendo mais exigentes. E o que acontece com o estudo de laboratório?
O animal de laboratório só é submetido ao princípio ativo puro, pureza máxima que consegue, às vezes é 99% e tal. Esses testes servem para identificar toxicidade imediata aguda, que a gente chama, toxicidade reprodutiva, se vai interferir na fertilidade, infertilidade, aborto, problemas no parto, isso tudo é toxicidade reprodutiva, se vai provocar problemas hormonais, se vai causar danos para o sistema nervoso, tudo nesses modelos experimentais que seguem essas diretrizes da OCDE.
Porém, como qualquer teste de laboratório, há limitações quando extrapolamos para a questão humana. Por exemplo, há alguns testes para avaliar neurotoxicidade. Aí se fazem alguns testes com galinha, se faz o teste de inocular a substância no camundongo, principalmente, coloca ele num labirinto, enfim, que testa algumas questões de memória, de reflexo. Porém, imagina, o sistema nervoso é super complexo, o que a gente tem na nossa cabeça?
Então para um trabalhador da agricultura, só esse parâmetro de memória e de reações são importantes? Não. É importante, por exemplo, parâmetros de sociabilidade, de depressão, de ansiedade. São parâmetros do nosso sistema nervoso que aquele teste de laboratório não mimetiza de forma alguma. Tem essa limitação metodológica. A outra limitação é que o produto que vai para a prateleira, o produto que é aplicado na lavoura, ele não vem só aquele princípio ativo, às vezes vem um, dois ou três princípios ativos na mesma embalagem, e outros componentes que vão servir ali para espalhar o produto, para manter o produto mais tempo sobre as plantas, que podem aumentar a toxicidade daquele produto. Só que esse produto formulado, que é essa mistura de produtos tóxicos que podem ou não aparecer de forma muito sutil em testes de laboratório em animais, quando você mistura com outros, faz o que a gente chama de efeitos ou aditivos.
Então isso é uma das limitações. Por que os agrotóxicos que a gente tem registrados no Brasil podem causar câncer e estão causando, como a gente tem visto em estudos epidemiológicos? Primeiro ponto: porque muitos deles estão fora do critério por terem sido registrados antes de 2002; segundo ponto: o teste de laboratório é limitado, ele não consegue mimetizar toda a complexidade da fisiologia humana; e terceiro ponto, porque não é essa substância registrada que vai estar na prateleira, é uma mistura de substâncias.
Então deveriam ser considerados esses estudos epidemiológicos também nessa análise de toxicidade?
Isso, exatamente. Mas quando a gente tem um produto novo no Brasil, às vezes esse estudo epidemiológico não está disponível, às vezes ele está disponível em outro país. Por isso, a importância de uma revisão periódica, a cada cinco anos, por exemplo, vamos revisar o registro desse agrotóxico, vamos ver o que a gente tem de acúmulo. Aí você tem uma outra falha, primeiro: quanto que se investe em estudos epidemiológicos, por exemplo, para a Fiocruz, UFRJ e outras universidades públicas realizarem?
É muito pequeno, se você olhar os editais do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e tudo, são ínfimos. A segunda coisa, um outro dado epidemiológico que poderia subsidiar isso, é que as fichas de notificação [preenchidas pelos profissionais de saúde] que conseguissem, primeiro, a ficha ser boa, conseguir relacionar a questão do trabalho, o preenchimento do princípio ativo, do produto que aquele agricultor usou e chegou à intoxicação. E a outra questão, até a formação dos médicos, dos profissionais de saúde que fazem esse registro.
A gente tem um problema muito sério de subnotificação no Brasil. E essa subnotificação tem um erro muito grave que as pessoas não sabem: não é preciso ter comprovação cabal que aquela intoxicação foi por agrotóxico, a suspeita deve ser notificada. Então você notifica a suspeita, depois o sistema de saúde vai lá investigar se aquilo de fato ocorreu; se ocorreu, mantém a notificação, se não, retira. Então tem muito profissional que diz: “mas eu não tenho prova que foi por agrotóxico”, não precisa ter prova, basta notificar a suspeita.
Como saber se a intoxicação veio do agrotóxico?
Isso ocorre muito em cidades do interior, o profissional de saúde tem que entender o contexto do território onde ele está trabalhando, quais são as principais atividades econômicas, conhecer a toxicidade desses produtos, porque às vezes, até o próprio currículo da medicina não tem a disciplina toxicologia. Às vezes alguns cursos têm, de forma até optativa, não obrigatória. Então, parte da formação do médico e do profissional ser sensível àquele território onde ele está inserido.
Claro que se for uma intoxicação na cidade do Rio de Janeiro, talvez fique difícil fazer se ele tiver poucas informações. Mas chegando aqueles sintomas numa cidade no interior da Bahia, no Mato Grosso, em locais onde o agronegócio, a utilização de agrotóxico é muito intensa, a suspeita de intoxicação deve ser a primeira. E outra questão também sobre a qual a gente já ouviu vários relatos é a pressão dos setores econômicos desses lugares sobre os profissionais de saúde e os órgãos de saúde, ou até profissionais de saúde que são médicos, mas a família é do agronegócio. Isso tudo dificulta essa notificação.
O Idec, Instituto de Defesa do Consumidor, lançou em 2021 e 2022 dois estudos sobre a presença de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados. Qual a importância desse tipo de estudo? Eles são comuns?
Pois é, eu acho que o estudo do Idec mostra uma falha do SUS [Sistema Único de Saúde] de não investigar, não só do SUS, mas aí entra Anvisa e entra o Mapa também, tem essa atribuição de monitorar agrotóxicos em alimentos, em não realizarem análises em produtos industrializados. Então a pesquisa do IDEC desmonta um pouco esse mito de que o processamento de alimentos diminui a quantidade de agrotóxicos. Isso é mentira, o IDEC provou isso. O Instituto mostra que é preciso investir num monitoramento periódico desses alimentos industrializados pela Anvisa, pelo Mapa. Isso é uma questão muito importante que deveria ser olhada pelo próximo governo.
Nesse sentido, qual a importância da aprovação da Pnara, a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos?
A PNaRA é muito interessante. Primeiro, foi um projeto de lei de iniciativa popular apresentado pela Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] e por outras organizações da sociedade civil, como a Campanha Contra os Agrotóxicos e outras.
O projeto da PNaRA está praticamente todo dentro da lei europeia. Porque a lei europeia coloca que se registre o agrotóxico, mas que se avalie as alternativas, que se busque sempre o registro de produtos menos tóxicos, e o projeto institui isso. Ela prevê o monitoramente de agrotóxicos em água e alimentos de uma forma mais programática, a capacitação de agricultores, de agricultoras, de produtores em formas de cultivo, em formas de produção menos tóxica. A PNaRA não proíbe agrotóxico, na verdade, são etapas que já deveriam estar no trâmite dos órgãos de registro do Brasil e na assistência técnica.
Acho que é o mínimo que a gente precisa para garantir a saúde, principalmente da população do campo, que é a mais exposta aos agrotóxicos, mas também de quem consome. A partir dessa política a gente vai ter acesso com maior frequência aos resultados de monitoramento de agrotóxicos nos alimentos, na água que a gente bebe. A gente vai saber que aquele produto utilizado foi a última alternativa, foi a alternativa menos tóxica. Então é algo que toda sociedade, inclusive o agronegócio, deveria defender, porque ele também teria a garantia de ter acesso a produtos de fato mais modernos.